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Marx, Nietzsche e Wittgenstein escreveram entre meados do século XIX e a primeira metade do século XX. Eles desenharam um mundo que agora, e talvez somente agora, possa ser visto pelos nossos olhos que, enfim, são menos aptos que o desses gênios da crítica da cultura e da sociedade. Só com um surgimento de Trump pudemos finalmente entender a modernidade que a tríade de filósofos pintou.

Marx mostrou que o capital, na busca da acumulação, iria cada vez mais dispensar o homem e investir na maquinaria e na ciência. Com isso, iria produzir um mundo cheio de coisas e um homem distante do trabalho – para sua própria alegria e infortúnio ao mesmo tempo. Estamos vivendo isso agora. O  carro elétrico e completamente automático e a “Internet das coisas” é uma realidade. Nessa situação, dois tipos de indústria convivem: a nova indústria cria tecnologia e se basta com poucos operários, jogando a população para o setor de serviços; a velha indústria se segura aos trancos e barrancos (enfrentando a concorrência chinesa) e mantém um operariado branco, pouco escolarizado em comparação com seus filhos e netos. Esse operariado se ressente por conta de que a política não se interessa mais por eles.

Nos Estados Unidos, os setores adaptados à vida posta pela nova indústria seguiram Obama (We can!), e os da velha indústria viram em Trump (America Great Again!) a ilusão de uma volta ao passado. Microsoft, Google, Facebook e Amazon optaram claramente pelo capitalismo de Obama/Biden, ainda que com isso tenham que enfrentar tribunais antioligopolistas. Nenhuma delas vem do mundo da velha indústria das chaminés e da linha de produção fordista. Todas elas estão no mundo do capitalismo financeirizado e da população que fez do sociedade o local de trabalho, os “prossumidores” – produtores e consumidores ao mesmo tempo, ou seja, todos nós. Nós somos os que perderam a distinção entre trabalho e lazer, tanto no tempo quanto no espaço.

Nietzsche desenhou um panorama universal e, fazendo da modernidade um conceito transhistórico, falou do homem moderno como um fraco, um criador de juízos morais, unicamente preocupado com sua sobrevivência. Seus juízos morais, a avaliação de que há bons e maus, teria nascido exatamente para se livrar dos castigos vindos dos fortes e vencedores. Avaliando os vencedores como maus e não como simplesmente vencedores, inocularia neles a culpa, vingando-se deles e,  com isso, satisfazendo seu ressentimento. Nietzsche pensou tais homens como cristãos e liberais. Mas podemos vê-los na conjuntura atual como sendo os operários da indústria velha, base dos grupos mais afoitos da extrema direita que seguiu Trump e que, menos organizada do que a imprensa quer fazer crer, invadiu o Capitólio – e diga-se de passagem, de modo desarmado.

Não foi tentativa de golpe, foi apenas aventura de bobos, de gado a serviço de interesses pessoais de Trump. Este, por sua vez, quis e quer criar o caos para, quando estiver nos tribunais (pelos crimes vários, inclusive sonegação), ter algo para se apegar na sua defesa já preparada. Seus advogados dirão: ele é inocente e está aqui porque resistiu à fraude eleitoral, ele é vítima de perseguição política. Os ressentidos poderão estar na porta do Fórum para apoiá-lo.

Wittgenstein descreveu, em sua segunda fase, a linguagem como o que não corresponde ao mundo. O mundo possui uma mobília que não tem na linguagem termos que possam formar um conjunto representativo dele. A linguagem não é um espelho do mundo. O espaço lógico da linguagem não está termo a termo ligado ao espaço ontológico. Assim, quando falamos, não estamos sujeitos a uma semântica que vai das palavras para as coisas e das coisas para nós e vice-versa. Quando falamos estamos na linguagem e somente nela, e se apontamos para o mundo ainda o fazemos na linguagem. Não temos como sair dela para avaliar o mundo e ela própria. Assim, se nos entendemos, isso é por tentativa e erro, por experiência, por vivência conjunta. Nossa linguagem é fruto, antes de tudo, do uso. Ela pode ser interpretada pelo pragmatismo, não por filosofias realistas.

Podemos ou não acreditar nessa teoria de Wittgenstein (como podemos ou não acreditar em Marx ou Nietzsche), mas não temos o direito de deixar de levar em conta que vivemos atualmente num mundo em que consideramos nossas narrativas como possuindo um grau de autonomia bastante amplo. Encontramos muitas pessoas dispostas a viver em bolhas em que o uso das palavras só se faz no interior dessas mesmas bolhas, e as narrativas, então, se legitimam não mais pela noção de verdade ou falsidade, mas pelo aplauso que ganham dos pares. Algo aplaudido pela opinião pública (na verdade a opinião da bolha) é o certo e, então, o verdadeiro. O operariado ressentido que segue Trump adora ficar na Internet seguindo gurus que repetem o líder, e recebem “likes”, gerando narrativas que não são checadas com nada que não outras narrativas já internas, já próprias da bolha. Trata-se de um pragmatismo de bolha. É exatamente isso que fez os invasores do Capitólio servirem de gado para Trump.

Se olharmos para o desenvolvimento do capitalismo segundo Marx, a disposição dos ressentidos de Nietzsche e, por fim, o modo de funcionamento da linguagem descrito por Wittgenstein, podemos não só entender Trump (e, de certo modo, Bolsonaro), mas um pouco da Terra em que estamos. A duras penas tenho tentado fazer isso no canal Youtube.com/tvfilosofia, e quando dou um passo nisso, socializo logo com todos vocês.

2021 © Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo

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