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MINHA FORMAÇÃO

Para ajudar o leitor a criar a sua versão pessoal da história da filosofia e a montar uma biblioteca de textos fundamentais, o Mais! expõe nesta edição (de 8 de junho de 2003) uma espécie de “minha formação” de alguns dos principais protagonistas da área no Brasil e no exterior.
A cada um dos dez intelectuais entrevistados pelo caderno foram propostas três questões:

ALGUNS DOS ENTREVISTADOS JÁ FALERAM, MAS NÃO PODEMOS DIZER QUE NÃO ESTÃO ENTRE NÓS!

QUESTÃO 1

Qual é o filósofo que mais influenciou a sua formação intelectual?

QUESTÃO 2

Qual o filósofo que mais responde a suas inquietações atuais?

QUESTÃO 3

Qual o filósofo contemporâneo que lê com mais atenção?

Richard Rorty


É filósofo americano e professor na Universidade Stanford. É autor de, entre outros, “Para Realizar a América” (DP&A) e “Objetivismo, Relativismo e Verdade” (Relume-Dumará).

1. Wittgenstein é a figura que mais impacto exerceu sobre minhas ideias filosóficas. Seu livro “Investigações Filosóficas”, uma obra que chamou de “terapia filosófica”, dissolveu a maioria dos problemas filosóficos que fui educado a levar a sério. O livro abriu o caminho para que filósofos posteriores, como Wilfrid Sellars (1912-1989) e Robert Brandom, pudessem descartar as noções de “experiência”, “consciência” e “mente”. Eles o fizeram dando seguimento à observação de Wittgenstein de que não há como se interpor entre a linguagem e seu objeto. Em especial, não existe maneira alguma de decidir se uma palavra é apropriada para se referir a uma experiência. Assim, uma experiência perceptiva não é questão de algo ter sido “dado” à consciência e depois descrito em linguagem, mas de termos sido treinados a utilizar certos objetos de linguagem (“estou sentindo dor”, “isso é vermelho”, “essa é uma vaca”, “isso é bonito”) sob condições ambientais e neurológicas determinadas.

Não existe nada de “inefável” na experiência, a consciência não tem nada de misterioso e não existe maneira de avaliar a linguagem em termos de “adequação”. As descrições linguísticas muitas vezes são suplantadas por outras descrições linguísticas, mas isso acontece porque as últimas são mais úteis, não porque representem melhor os objetos que descrevem. Essa visão da percepção enfraquece a idéia empírica de que os sentidos colocam nossa mente em “contato direto” com a realidade e também a idéia de que algumas descrições do mundo são mais próximas de “como o mundo é vivido diretamente” do que outras. Uma vez que abrimos mão da esperança de encontrar uma descrição mais precisa da experiência, torna-se fácil eliminar de nosso vocabulário filosófico a noção de “experiência” e a de “mente”. Os wittgensteinianos enxergam os seres humanos como organismos que, como outros animais, reagem a circunstâncias ambientais com respostas comportamentais. Logo, o que nos distingue dos brutos (e dos computadores) não é o fato de possuirmos um ingrediente extra adicional ao qual se dá o nome de “mente” ou “consciência”, mas simplesmente nossa capacidade de apresentarmos comportamentos especificamente linguísticos, trocando marcas e sons uns com os

outros de maneiras que respeitam normas sociais. Os seguidores de Wittgenstein descartam a idéia de que a linguagem seja uma tentativa de representar a realidade com precisão e também a idéia de que a verdade consiste na correspondência com a realidade. Essas mudanças lhes permitem deixar de lado perguntas céticas sobre se a mente humana é ou não capaz de apreender a verdadeira natureza das coisas. O progresso científico, numa perspectiva wittgensteiniana, não é questão de chegar mais perto de algo que já existia (a Verdade ou Como o Mundo Realmente É), mas sim de encontrar maneiras de falar que nos capacitem a prever o que vai acontecer, com isso nos proporcionando condições de desenvolver tecnologias que nos permitam exercer mais controle sobre nosso ambiente. O progresso moral é questão de capacitar grupos cada vez maiores de humanos a levar vidas mais livres e mais felizes, e não de alcançar clareza maior quanto à chamada “realidade moral”. O progresso filosófico não é questão de resolver problemas ou penetrar mistérios, mas sim, como disse Wittgenstein, de “indicar à mosca a saída da garrafa na qual ela está presa”.

NA FOTO RICHARD RORTY (1931 – 2007)

A NARRATIVA DA VIDA

O filósofo mais interessante e original de nossos tempos é Robert Brandom; é com os livros dele que eu passo mais tempo hoje.”

Credit: Stanford University

2. Depois de ser ajudado por Wittgenstein e seus seguidores a descartar a problemática da filosofia analítica anglófona contemporânea, eu me vi atraído por Heidegger. Heidegger começa, por assim dizer, do lugar onde Wittgenstein pára. Ele dá o anticartesianismo como certo e, em seguida, relata uma história sobre o cartesianismo e o kantismo como etapas no caminho que nos levou de Platão a Nietzsche -um filósofo cujas opiniões sobre a verdade e o conhecimento se encaixam muito bem no pragmatismo ao qual fui conduzido pelas implicações da crítica feita por Wittgenstein ao cartesianismo e o empirismo. Heidegger via tanto Nietzsche quanto o pragmatismo com o que me parece ter sido desconfiança injustificada, mas nos fez um relato novo e brilhante da história do pensamento filosófico no Ocidente. Assim, ao longo de minha carreira filosófica, o pensar sobre a narrativa de Heidegger foi pouco a pouco substituindo o pensar sobre a terapia de Wittgenstein.

3. O filósofo mais interessante e original de nossos tempos é, na minha opinião, Robert Brandom. É com os livros dele que eu passo mais tempo hoje -estudando-os, procurando compreendê-los melhor e comentando-os. Brandom começa onde Wittgenstein e Heidegger param e desenvolve uma filosofia neo-hegeliana da linguagem e da cultura. Ele é praticamente o único filósofo analítico a apreciar Hegel e a produzir uma versão atualizada do hegelianismo -uma que une Hegel a Frege, oferecendo um relato da lógica como o processo de tornar explícitas as normas sociais e do progresso científico e moral como o processo de novamente entremear essas normas de maneira a produzir poder e liberdade maiores.Logo, o que nos distingue dos brutos (e dos computadores) não é o fato de possuirmos um ingrediente extra adicional ao qual se dá o nome de “mente” ou “consciência”, mas simplesmente nossa capacidade de apresentarmos comportamentos especificamente

linguísticos, trocando marcas e sons uns com os outros de maneiras que respeitam normas sociais. Os seguidores de Wittgenstein descartam a idéia de que a liBrandom nos mostra como levar adiante a ideia de Wittgenstein de que não pode haver linguagem privada, desenvolvendo um relato neo-hegeliano da razão como algo essencialmente social. Leio Brandom como tendo concluído o trabalho de reconciliar Hegel com Darwin -uma tarefa iniciada, mas não concluída, por John Dewey. Brandom pega os insights de Nietzsche, de Heidegger e dos pragmatistas e os entremeia para formar uma narrativa neo-hegeliana. A meu ver, é uma realização intelectual brilhante.

NA FOTO ANTONIO NEGRI

A FILOSOFIA EMBRUTECEDORA DE BUSH

Foram de Kant, Hegel e Marx os textos com os quais me agradava passar as noites de trabalho e os dias de descanso.”

Antonio Negri


É filósofo italiano, autor de “O Poder Constituinte” (DP&A) e, com Michael Hardt, de “Império” (Record).

1. É difícil dizer. Lembro-me de minha adolescência filosófica como uma experiência de imersão em águas profundas e dos muitos filósofos que lá apareciam como peixes que eu tentava agarrar. Devo dizer que não tive nenhum interesse pela filosofia medieval, o que foi uma coisa estúpida, evidentemente, mas foi assim. Isso resultou, acredito, do fato de eu ter vivido em um ambiente clerical e de ter confundido a adesão à filosofia com a liberdade e a revolta. Quanto às figuras que permanecem em minha cabeça estão Niccolò da Cusa e Pico della Mirandola, Bovillus (Charles de Bouelles) e Erasmo e depois a grande filosofia da natureza do humanismo e da Renascença italianos, de Bernardino Telesio a Giordano Bruno, de Tommaso Campanella a Giacomo Zabarella a Galileo Galilei. Quando então saí definitivamente da água e as sombras se fizeram obras, foram de Kant, Hegel e Marx os textos com os quais me agradava passar as noites de trabalho e os dias de descanso. Se foram esses os filósofos que mais me influenciaram, não sei ao certo dizer. Todavia foram essas as figuras com as quais, adolescente, eu mais debati.

2. É estranho reconhecê-lo, mas não são filósofos contemporâneos aqueles aos quais se refere o meu questionamento atual: são acima de tudo Maquiavel, Espinosa e Nietzsche. Isso pode ser resultado de duas situações diversas: na primeira, os meus problemas são problemas antigos, que se colocaram na Idade Moderna, os quais hoje me prendem; de outra forma pode ser que aqueles filósofos a que me refiro continuem ativos na pós-modernidade, tanto quanto ou mais do que o foram na modernidade. Há sempre em nosso resgate do passado um anseio pelo devir. Quem não for submetido pela história da filosofia (Deleuze erroneamente acreditava pertencer à ultima geração que por ela fora violentada) sabe que aqui e ali, sobre esse mar de ordem e submissão, de tradição de poder, de violência ordenativa e teleológica, é possível encontrar alguma ilha de liberdade crítica e de desejo incontinente. Provavelmente esses três autores a que me refiro fazem parte dessa vegetação insular selvagem: não é escandaloso que as minhas questões atuais, ontológicas e políticas, sejam repropostas a eles. “Que coisa é uma instituição que nasce das lutas?”, pergunto a Maquiavel. “Que coisa é uma democracia que nasce da vontade e do desejo de todos”, pergunto a Espinosa. “Que coisa é a vontade de poder em um mundo biopolítico global e sem limite, e o não-repouso da razão”, pergunto a Nietzsche.

3. Alguns dos filósofos contemporâneos que mais leio hoje já morreram. Outros, como eu, envelhecem. Falo de Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida, Nancy, Agamben. São todos gente expatriada, mas que foi capaz de viver a mudança pós-moderna em sentido pleno, positivo e construtivo.
Acredito que o elemento fundamental que me aproxima desses autores seja o nexo contínuo e comum que ontologia e ética, imersão no ser, descrição do presente e decisão política encontram no agir filosófico deles. Estranho: agora me vem à mente um outro autor, não de todo contemporâneo, mas quase, norte-americano, que, nesta época embrutecida pela filosofia de George W. Bush, desperta a consciência da reforma necessária: John Dewey.

Jurgen Habermas


É filósofo alemão e expoente da segunda geração da Escola de Frankfurt. É autor de “Teoria da Ação Comunicativa” e “O Discurso Filosófico da Modernidade” (ed. Martins Fontes)

1. Meu pensamento foi marcado não por um único filósofo, mas pelo ir e vir entre os motivos, as linguagens e os argumentos dos três filósofos alemães decisivos. De Kant eu me apropriei do conceito de autonomia, que dirigiu o pensamento filosófico a trilhos completamente novos. Tenho em mente não só a filosofia moral, mas também a filosofia do direito. Em Kant me tem fascinado justamente o elemento rousseauniano da autolegislação dos cidadãos unidos.

Juntamente com o único direito humano originário de viver sob as leis da liberdade, ou seja, de ter direitos de modo geral, a autonomia política dos cidadãos fundamenta “o modo de governar republicano”. Na filosofia alemã, Kant é o único pensador politicamente inequívoco. Por essa razão, ele foi para minha geração, depois de 1945, algo como um salva-vidas. Certamente só de Hegel, sobretudo do jovem Hegel que vai até 1806, eu aprendi que nós temos de conceber a razão em materializações históricas dolorosas. Caso contrário, permanece-se na “impotência do dever-ser”. Sem uma divisão de trabalho produtiva com as ciências sociais e do espírito, a filosofia não pode se livrar da palidez de um normativismo magro. Enfim, aprendi de Marx que a razão perde seu aguilhão crítico se é inchada em espírito absoluto.

A dialética não deve paralisar na glorificação neo-aristotélica da “eticidade” das relações dominantes. A razão é uma toupeira. Foucault nunca esqueceu isso. O pensamento radicalmente histórico dos jovens hegelianos, que mantém aberta a história e que confere à práxis precedência sobre a teoria, nos reconduz novamente de Hegel a Kant, nos deixando a um passo deste. De um ponto de vista filosófico, nós permanecemos, em todos os aspectos essenciais, contemporâneos da geração dos hegelianos de esquerda. Somente dessa visão prospectiva nós podemos aprender alguma coisa também de Nietzsche, mas não da retrospectiva sobre Nietzsche que nos abre a “Carta sobre o Humanismo”, de Heidegger.

NA FOTO JURGEN HABERMAS

O pragmatismo americano: catalisador instigante

“Acompanho atentamente os trabalhos de Rorty e de Brandom, de Putnam e Dworkin.”


2 – Qual o filósofo que mais responde a suas inquietações atuais?

3- Qual o filósofo contemporâneo que lê com mais atenção?

2. Para mim, o pragmatismo americano desempenhou desde os anos 60 um papel catalisador instigante. Catalisador à medida que a discussão com o pragmatismo kantiano de Peirce e com o hegelianismo naturalizado de George Herbert Mead e de John Dewey colocou nossa própria tradição sob uma luz diferente, com mais força contemporânea. Dessa discussão eu aprendi como se pode unificar Kant e Darwin ou como se pode desenvolver a filosofia da linguagem de Wilhelm von Humboldt em uma teoria da ação comunicativa. Sempre compreendi o pragmatismo americano como uma corrente de pensamento jovem-hegeliana, como a terceira corrente, ao lado de Marx e de Kierkegaard. E como a única que tomou realmente a sério a democracia liberal.

3. Eu não conservo nada do gesto alemão com que se estiliza esse ou aquele e preferivelmente a si mesmo como o “grande filósofo”. Em diversas épocas aprendi de diversos colegas diversas coisas, mais continuamente de meu amigo Karl-Otto Apel. Após a conclusão de meus estudos universitários, convencionalmente alemães, Adorno me abriu os olhos para o caráter radical da modernidade. Em minhas próprias reflexões no âmbito da filosofia moral ou no da filosofia do direito, eu me senti naturalmente encorajado e confirmado por John Rawls. Acompanho atentamente os trabalhos de Rorty e de Brandom, de Putnam e Dworkin. Em geral aprendemos também com a crítica inteligente dos próprios alunos.

NA FOTO PAULO GHIRALDELLI

CAIXAS DE FERRAMENTAS

“Ainda que eu ache que Marx e Foucault tenham sido gênios adoráveis, quem não lê Donald Davidson não está lendo filosofia do século 21.”


1. Fui educado filosoficamente pelos membros da Escola de Frankfurt, particularmente por Max Horkheimer e Adorno. Mas creio que a filosofia analítica e o pragmatismo tomaram espaço no meu pensamento por meio de Richard Rorty, Habermas (em sua segunda fase), Donald Davidson e Willard Van Orman Quine (1908-2000).

2. As inquietações intelectuais não podem ser respondidas por um único filósofo. As inquietações intelectuais, se verdadeiras, pelo menos como eu as tomo, são encaminhadas e equacionadas pela filosofia em geral, por vários filósofos, mas sobretudo pela literatura e pelo cinema. Essas coisas andam juntas, cinema e filosofia. A última é uma caixa de ferramentas para poder apreciar a primeira, e ambas podem ser vividas se acrescentarmos a tudo um pouco de literatura e de amor sexual presencial e virtual.

3. Não há dúvida: é e tem de ser Donald Davidson. Ele é o maior filósofo vivo no mundo, e para entendê-lo temos de ler Quine, em uma ponta, e Rorty, em outra ponta. Ainda que eu ache que Marx e Foucault tenham sido gênios adoráveis, quem não lê Donald Davidson não está lendo filosofia do século 21. Eu sou um professor de filosofia do século 21.

NA FOTO SERGIO PAULO ROUANET

O ILUMINISMO CONTRA-ATACA

” Jurgen Habermas é o verdadeiro herdeiro do Iluminismo contemporâneo”

Sergio Paulo Rouanet


É  ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. Acaba de lançar “Os Dez Amigos de Freud” (dois volumes, Companhia das Letras).

1. Sem dúvida, Marx. Mas houve várias etapas na apropriação de Marx no Brasil. Passei por quase todas, menos pelo stalinismo, que sempre me inspirou uma franca aversão. Eu estava preparado para uma leitura hegelianizada de Marx graças às aulas sobre a “Fenomenologia do Espírito” [de Hegel], dadas na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) por esse extraordinário professor, totalmente inocente de simpatias marxistas, que foi Jerzy Zbrozek. Essa predisposição, somada à influência da vaga existencialista que chegara ao Brasil nos anos 50, me levou a achar que o “verdadeiro” Marx era o dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, de 1844, profeta de um marxismo humanista, misto de Hegel e de Feurbach, com laivos de Kierkegaard, que faziam com que o conceito de alienação parecesse mais importante que o de mais-valia. Depois descobri Althusser, que me convenceu de que tudo isso pertencia à fase metafísica de Marx, de que o Marx que contava era o posterior ao “corte”, o Marx duro e puro do materialismo histórico. Foi nessa fase

que passei a ler sistematicamente “O Capital”. Mas as sucessivas autocríticas de Althusser, motivadas em parte por sua ligação com o Partido Comunista francês, me levaram a buscar outros rumos, que assumiram, no que diz respeito ao marxismo, a forma de um interesse crescente por Gramsci e mais tarde por Walter Benjamin e pela Escola de Frankfurt -Marcuse, Adorno e Horkheimer.

2. Não se pode falar em um só filósofo, mas sim numa perspectiva filosófica. Em grande parte essa perspectiva tem como eixos as figuras de Marx e Freud. Quanto a Marx, ele está longe de ocupar o lugar dominante que tinha em meu passado filosófico. Mas a queda do Muro [de Berlim] não o transformou num autor obsoleto. Chego a suspeitar que é somente agora, quando o marxismo é dado por morto, que algumas de suas teses clássicas -como a que denuncia o caráter maciçamente excludente da economia capitalista- podem encontrar sua validação, pois o processo de globalização neoliberal está tendendo a eliminar contratendências (políticas keynesianas, Estado de Bem-Estar Social, ação sindical) que antes serviam como amortecedores, protegendo o sistema e bloqueando a realização das previsões de Marx. Quanto a Freud, é impossível compreender a res-

surreição contemporânea de velhas patologias, como o fundamentalismo, o nacionalismo, o racismo, a agressividade interétnica e o terrorismo, tanto o religioso como o de Estado, praticado por Bush e [o primeiro-ministro israelense Ariel] Sharon, sem o auxílio de categorias como narcisismo de grupo, pulsão de morte, medo da castração e nostalgia da horda. Sem prejuízo de autores mais recentes, Marx e Freud representam, assim, os dois pólos do Iluminismo moderno.

3. Jürgen Habermas. Foi ele que nos revelou o duplo rosto da modernidade, ao mesmo tempo o reino da racionalidade sistêmica, voltada para a adequação de meios a fins, e o lugar da racionalidade comunicativa, voltada para o entendimento mútuo, através da argumentação racional. É o verdadeiro herdeiro do Iluminismo contemporâneo, o primeiro a recodificar segundo um paradigma pragmático-linguístico os ideais clássicos da Ilustração e a demonstrar que sob essa forma aqueles ideais continuam relevantes para o presente.

MARX EM CAMADAS

Nele encontrei um incomparável poder e finura de crítica, que infelizmente hoje vejo suprimida com ligeireza


1. Certamente o filósofo básico em minha formação foi Karl Marx. Na época em que iniciei minha vida profissional, reinava, nos meios acadêmicos de esquerda, a mais ortodoxa das leituras de sua obra: incompatibilidade entre capitalismo e sistema escravista, a colônia brasileira inserida no capitalismo comercial e caracterizada como pré-capitalista, com todo o correlato cortejo ideológico: atraso econômico, político e cultural, rudimentar estrutura de classes e consequente fragilidade das instituições, operariado imaturo e necessidade de conduzi-lo por dirigentes, alianças “progressistas” para não perder o trem da história. Para enfrentar esses estereótipos (vários ainda vigentes, apesar da máscara neoliberal) contraditados por minhas pesquisas, vali-me de Marx.

Nele encontrei um incomparável poder e finura de crítica, que infelizmente hoje vejo suprimida com ligeireza. Nele ganhei também a dura disciplina e o grande prazer de enfrentar um texto difícil, com camadas semânticas e doutrinárias, imagens, ressonâncias, ampliações e críticas subentendidas ou para além da rigorosa escrita aparente. Sempre as necessidades da pesquisa -no esforço de compreender a sociedade brasileira e sua inserção mais ampla- levaram-me ao estudo dos pensadores que estão na gênese da cultura moderna, como Francis Bacon ou Erasmo. Aí, outros estereótipos se impuseram, e, para criticá-los, precisei aprofundar meu trabalho no rumo da cultura antiga, sobretudo a grega. Dos autores que surgiram em torno da crítica ao capitalismo e da cultura, devo mencionar Sartre, Adorno e Horkheimer. Leo Spitzer foi o mais importante para a interpretação de textos e para a compreensão do contexto em que se inscrevem.

2. Dos autores verdadeiramente criativos, Elias Cannetti nos provê do aparato conceitual e crítico sobre o mundo moderno.

3. Por fora de meu trabalho, felizmente, leio autores intemporais: no momento, o fantástico livrinho de Bonaventura des Periers, “Cymbalum Mundi”, obra-prima de escrita, de liberdade e audácia de pensamento, de elegância, graça e contundência na produção da cultura. Não só encanta o espírito e nutre a crítica, mas diverte imensamente com seu engenho agudíssimo.

Bento Prado Jr.


É filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de, entre outros, “Presença e Campo Transcendental” (Edusp).

1. Embora eu tenha tido uma excelente oportunidade, iniciando-me na leitura de Wittgenstein já no ano escolar 1961-2, na França, com um curso de meu professor Gilles Granger (o primeiro a lá ser ministrado sobre nosso autor), só muito mais tarde, nos anos 80, viria a descobrir a importância central de sua obra, graças à ajuda de colegas como Luis Henrique L. dos Santos, Balthazar Barbosa Filho e Arley Ramos Moreno (mas também de meu filho, Bento Prado Neto). Nada em minha formação parecia levar-me aonde hoje estou, mesmo se, como aluno do [José Arthur] Giannotti, em 1956, tenha pensado em consagrar-me à filosofia da matemática, num projeto que sensatamente deixei de lado muito rapidamente.

Desde antes de entrar na universidade, minhas obsessões pessoais misturavam filosofia, poesia e política num único bloco. É claro que estava assim condenado a ceder à fascinação da escrita e da prática de Sartre. Disciplina e vontade de autocrítica fizeram-me escolher como objeto de minha tese a obra de Bergson, que se me apresentava como o anti-Sartre por excelência (ignorava então que Sartre descobrira a filosofia justamente por meio de Bergson). Mas, sendo uma análise imanente da obra de Bergson, minha tese retomava indiretamente os debates contemporâneos (principalmente os textos póstumos de Merleau-Ponty): subjetividade, negatividade, temporalidade. Obrigado ao exílio em 1969, na França dei continuidade a meu trabalho, visando agora a questão da subjetividade na sua relação com a linguagem, ou seja, estudando a concepção da linguagem não como representação, mas como práxis e como horizonte da intersubjeti-

vidade, tal como se exprime na obra de Rousseau. Foi, portanto, a influência de vários filósofos (Bergson, Sartre, Merleau-Ponty, todos franceses, como é de notar), ao longo de minha formação, que me levou de volta ao filósofo austríaco. Sem o saber, estava preparado, no fim dos anos 70, a retornar à leitura do filósofo que começara a estudar 19 anos antes sob orientação de Granger. Estranho itinerário? De qualquer maneira foi o meu, e talvez não falte sentido nessa ruminação permanente, nessa constante tentativa de pensar o mesmo de uma maneira outra (que é a definição heideggeriana da filosofia).

NA FOTO BENTO PRADO JR. (1937 – 2007)

O PORTO SEGURO DA FILOSOFIA

Os relativistas (ou os céticos) e dos naturalistas que definem os dois escolhos que nossa nau deve evitar, para reencontrar o porto seguro da filosofia, depois de errar pelo oceano infinito das aporias.


2 – Qual o filósofo que mais responde a suas inquietações atuais?

3- Qual o filósofo contemporâneo que lê com mais atenção?

2. Compreende-se, assim, a importância das aporias wittgensteinianas sobre o estatuto do Sujeito: daquele “mínimo de reflexividade” sem o qual não há projeção de um estado de coisas numa proposição (cf. L.H.L. dos Santos) do “Tractatus” até aquele sujeito que, exercendo sua liberdade por meio da prática da variação imaginária, dissolve as ilusões “platônicas”. A idéia do “ver como” não seria um retorno ao puro pháinestai, em seu essencial pluralismo, que Platão queria reduzir ao monismo do eidos? Mas, sobretudo, cumpre assinalar a importância e a originalidade dessa nova “dedução transcendental da apercepção”, entre os modelos opostos de Peter Strawson [1919] e de Heidegger, tanto em seus textos sobre Kant como em suas obras de “metafísica descritiva” ou de “ontologia fundamental”. Daí o lugar privilegiado que Wittgenstein deverá ocupar no livro sobre “A Ipseidade e Suas Formas de Expressão” que estou começando a escrever.

3. É claro que posso distinguir, dentre meus contemporâneos, aqueles que caminham na mesma direção que busco e aqueles aos que me oponho mais frontalmente. Não se trata, no caso da filosofia, da oposição entre amigos e inimigos. Leio com mais atenção aqueles de que discordo, para verificar se tenho de fato razão ou bons argumentos para me opor a eles. Falo essencialmente dos relativistas (ou os céticos, como meu bom amigo [Oswaldo] Porchat) e dos naturalistas (especialmente aqueles que querem “naturalizar” a fenomenologia através das ciências cognitivas) que definem os dois escolhos que nossa nau deve evitar, para reencontrar o porto seguro da filosofia, depois de errar pelo oceano infinito das aporias.


1. Nietzsche, sem hesitação. Sem as leituras de Nietzsche, particularmente “O Nascimento da Tragédia”, por volta dos 18 anos, eu talvez não tivesse sido filósofo, mas professor de letras ou músico. Na época, eu estava profundamente incomodado com Platão e o Sócrates platônico que nos apresentavam na escola como um ícone da sabedoria e do bem; acabei por concluir que eu era o único ser no mundo a pensar o contrário. A leitura da “O Nascimento da Tragédia” foi para mim um violento choque afetivo: eu não era o único no mundo, éramos pelo menos dois. Devo no entanto atenuar um pouco essa declaração bastante banal (quem hoje não invoca o testemunho de Nietzsche?). Parece-me que o Nietzsche no qual me inspirei tem muito pouca relação com aquele que, após a leitura de Nietzsche por Heidegger (leitura que é para mim um total contra-senso), influenciou e continua a influenciar todos os autores franceses que invocaram o nietzscheísmo,

com a notável exceção do Gilles Deleuze de “Diferença e Repetição”. Acrescentarei também que esse falso Nietzsche que reina hoje na ideologia francesa não merece certamente, em minha opinião, obter mais espaço no ensino.  Antes de Nietzsche, ainda mais jovem -14 anos em relação ao primeiro, 16 em relação ao segundo-, fiquei muito impressionado pela leitura de trechos de Schopenhauer e pela leitura dos “Pensamentos” [ed. Martins Fontes] de Pascal, dois autores que também contribuíram muito em minha orientação para a filosofia, assim como, mais tarde, Lucrécio e Espinosa.

2. À questão que lhe colocavam com frequência, “O que sente diante de uma obra de arte?”, Dalí respondia: “Salvador Dalí nunca sentiu absolutamente nada diante de uma obra de arte”. Em meu modesto nível, confesso nunca ter-me colocado “interrogações” filosóficas. Interesso-me mais pela verdade ou a falsidade das teses, por sua pertinência ou não-pertinência. Os filósofos que admiro me impuseram mais respostas do que responderam a questões prévias de minha parte

3. Nenhum. Há muito poucos filósofos por século. Teríamos dificuldade de encontrar mais de 20 desde Parmênides [século 5º a.C.]. No que se refere ao século 20, conheço apenas dois: Bergson e Wittgenstein. Não incluo Heidegger, que considero antes de tudo um grande escritor e um homem do século 19.

Clément Rosset (1939 – 2018)

Luiz Alfredo Garcia-Roza


É  escritor e professor na pós-graduação em teoria psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de “Introdução à Metapsicologia Freudiana” (três volumes, Jorge Zahar) e “Uma Janela em Copacabana” (Cia. das Letras).

1. Sem dúvida, Platão. Entendo que a influência exercida por um filósofo deva ser avaliada não pelo número de vezes que ele é citado (ou invocado), mas pelo tanto que ele permanece presente, mesmo que silenciosamente, determinando os caminhos ou descaminhos do nosso pensar. Daí, Platão. Não penso aqui em Platão enquanto criador de uma filosofia, mas Platão enquanto autor do próprio projeto filosófico. Esse projeto permite a passagem da opinião (doxa) para o conhecimento (episteme) ou permite retirar o saber do registro da certeza subjetiva (opinião) e

construir no seu lugar a verdade objetiva (conhecimento). Não que a opinião seja em si mesma errada ou falsa, mas lhe falta um princípio de legitimação. O que a sustenta é a certeza subjetiva do sujeito (o dono da voz), da sua capacidade de persuasão, das suas habilidades retóricas ou até mesmo da violência. Com a opinião, não somos condenados necessariamente ao erro, somos lançados no desamparo. O projeto platônico é o de substituir a opinião pelo conceito. Platão inventa o conceito e, ao fazê-lo, inventa a filosofia.  Ele acredita que o único meio de ultrapassar a subjetividade da opinião é constituindo um discurso que contenha seu próprio critério de validade, um discurso autolegitimado, sendo essa autolegitimação fundada na não-contradição. Esse foi o momento de nascimento da razão c onceitual regida pelo

princípio da não-contradição; e o discurso assim constituído chamou-se discurso filosófico. Ocorre que, ao afirmar a autonomia do discurso universal fundado na razão conceitual, ele acredita poder realizar esse projeto independentemente da experiência, ou melhor, pretende realizá-lo por meio de um progressivo afastamento da experiência sensível em direção ao inteligível puro. Ao fazê-lo, inicia o movimento do pensamento em direção a um mundo de puras formas: uma realidade meta-física. Está criada a transcendência. Os 23 séculos que vão de Platão a Hegel cobrem o processo de realização do projeto platônico. É à medida que transitamos por esse espaço de questões que podemos ser considerados platônicos lato sensu mesmo que não o sejamos stricto sensu. No interior desse espaço, a influência de Platão é plena.

SOB A SOMBRA DE PLATÃO

O filósofo contemporâneo que leio com mais atenção é Gilles Deleuze


2 – Qual o filósofo que mais responde a suas inquietações atuais?

3- Qual o filósofo contemporâneo que lê com mais atenção?

2. A transcendência é pois a marca do platonismo e de suas formas derivadas. Ela é uma espécie de falha do sistema imunológico da filosofia. Essa ascese em direção à idéia pura, livre de toda contaminação sensível, tem o seu preço. E o preço da pureza da Idéia é a impureza da Razão. A transcendência (busca da pureza) é o pecado capital da razão. Uma filosofia consistente e consequente não poderia apelar para a transcendência. Daí, Espinosa e Hegel: dois gênios da imanência. Tão distantes e tão próximos, respondem pelo que de mais consistente a filosofia produziu nesses dois milênios e meio. E esses são os filósofos -peço licença para a eles acrescentar Hume- que, apesar da distância temporal, ainda respondem às minhas inquietações intelectuais, agora menos inquietas e mais serenas, mas nem por isso menos livres.

3. O filósofo contemporâneo que leio com mais atenção é Gilles Deleuze, com sua filosofia da diferença. O platonismo, com seu primado da Identidade, encontra em Hegel seu fechamento (ou acabamento) e ao mesmo tempo seu ponto de inflexão em direção ao primado da diferença (em lugar do primado da identidade). Com isso, o platonismo é subvertido em sua essência e surge um novo modo de fazer filosofia, que tem em Gilles Deleuze sua expressão mais acabada. Deleuze reinventa a filosofia reinventando o conceito. E o operador fundamental aqui não é mais o idêntico, o mesmo, mas a diferença. É a filosofia virada do avesso. No lugar das Idéias platônicas, surgem os simulacros; no lugar de essências eternas e imutáveis, surgem as máscaras; no lugar do ser: o acontecimento. Uma nova sintaxe filosófica.


1. Não posso dizer que minha formação intelectual se deveu apenas à filosofia ou a um filósofo. Para ela convergiram, entre outras influências, meus três cursos feitos na universidade -direito, filosofia e psicologia- e minha paixão pela literatura. Cheguei a Heidegger, primeiro, através de um semestre sobre Kant (“Crítica da Razão Pura”), em 1955, do qual me vem o problema da relação entre sensibilidade e entendimento. Na tradição aristotélico-tomista, de onde eu vinha, isso não era resolvido satisfatoriamente. A questão do fundamento da síntese no juízo se tornara um problema central. Kant me ensinara algo sobre os limites da metafísica. Em segundo lugar, um curso sobre Wittgenstein (“Tractatus Logico-Philosophicus”), em 1956, trouxe-me a afirmação de que as proposições metafísicas são sem sentido. Wittgenstein afirmava o vazio da metafísica. Quando li “Ser e Tempo”, de Heidegger, em 1958, sobre o qual aprendera rudimentos na história da filosofia contemporânea, topei com a questão não-resolvida da pergunta pelo ser. Para mim, isso era o problema central da metafísica. Heidegger se propunha a examinar o sentido do ser a partir de sua analítica existencial. Com isso se abria, para mim, um campo inteiramente novo e fantástico para a filosofia: pensar a questão do ser ligada ao “ser-aí” e, assim, a partir do tempo. Disso resultou minha tese, que traz o título “Compreensão (do Ser) e Finitude”, na qual um certo idealismo da compreensão salvava ainda um realismo que liga o homem ao ser. O problema do conhecimento não deveria ser resolvido nem por uma espécie de iluminação que vinha de cima, como se afirmava na metafísica, nem pelo dualismo kantiano que perdia o mundo. A abertura do “ser-aí” enquanto “ser-no-mundo” se deveria tornar o precário fundamento (sem fundo) de qualquer conhecimento. À medida que apareciam as obras do segundo Heidegger, realizando a destruição da metafísica e uma nova apropriação por meio da história das diversas teorias do ser que o confundiam com um determinado ente, passei a ligar o problema do fundamento do conhecimento na tradição com sua identificação com uma concepção do ente. Pareceu-me, então, ser tarefa para a solução do problema do conhecimento pensar aquilo que já sempre nos acompanha em qualquer experiência e que é uma implícita (pré-)compreensão de ser. Assim, se juntavam ontologia e conhecimento para a (dis-)solução da questão transcendental de Kant numa concepção de transcendental não-clássico, como elemento estruturante e organizador do conhecimento.

2. Tendo aprendido essa lição de Heidegger sobre a metafísica e sua história, estava aberto o espaço para a aceitação da obra de Gadamer, “Verdade e Método” (1961). Descobri aí o exame da historicidade do sentido e da impossibilidade de recuperá-lo inteiramente pela consciência histórica. Essa compreensão da hermenêutica filosófica apresentou-se como um caminho para uma certa “aplicação” da filosofia ao mundo da cultura. É claro que Gadamer visava a uma verdade que se manifesta na arte, na história e na linguagem e que precede e acompanha qualquer questão de verdade e método nas ciências humanas. Mas as lições de Gadamer pareciam irrecusáveis para pensar de uma outra maneira que a ortodoxia as idéias de Marx, Nietzsche e Freud. Foi assim que me libertei da camisa-de-força do debate ideológico que envenenou muitas cabeças filosóficas no Brasil. Lendo, concordando e às vezes discutindo com Habermas e sua recepção de Heidegger, Gadamer e da hermenêutica, consegui desenvolver muitas reflexões sobre o projeto da modernidade que se reflete nas ciências humanas. Perdi por esse caminho o otimismo que pretende continuar o projeto inacabado da modernidade com uma filosofia da história. Assumi a necessidade de solapar o dualismo e o subjetivismo da modernidade, como, de certo modo, Heidegger fizera na sua crítica à metafísica tradicional. Mas cedo descobri que a hermenêutica filosófica de Gadamer não é filosofia. O universo de autores e problemas que aparecem dispersos por meio século -e que são devedores de uma tradição que foi tomando forma por meio das interpretações e evolução da fenomenologia hermenêutica de Heidegger- impõe a preparação de instrumentos de avaliação desse paradigma filosófico e de critérios para poder separar tantos discursos irrelevantes, de núcleos efetivamente produtivos para a filosofia atual. Não posso deixar de citar com especial apreço a presença das idéias de Karl-Otto Apel, sobretudo, em suas interpretações de Peirce, Heidegger, Gadamer e Wittgenstein. Mesmo que eu perceba os limites de um tipo de filosofar baseado nas análises da autocontradição performativa, não posso deixar de ver a seriedade do filósofo que opera com elas.

3. Ernst Tugendhat (1930) é o autor que em grande parte acompanhei no desenvolvimento de sua filosofia. Não fosse a sua percepção de filosofia analítica e de crítica da ontologia e da fenomenologia, dificilmente eu teria encontrado (e em parte permanecido fiel), a grande tradição do pensamento analítico e da teoria do conhecimento. Agrada-me muito a maneira como esse filósofo trilhou um caminho entre a fenomenologia e a filosofia analítica da linguagem e do conhecimento.

A presença de um estilo descritivo-estrutural revela influências da fenomenologia -sobretudo nos seus ensaios descritivos de antropologia filosófica aparecem questões centrais de “Ser e Tempo”. A tradição anglo-saxônica dificilmente aceita sem crítica seus estudos de filosofia analítica. Reconheço exatamente aquilo que a ela causa arrepios: uma visão de totalidade que pretende responder a questões centrais do problema do conhecimento e explorar as bases da moral, por meio da análise da linguagem e da dimensão de profundidade que torna único o lugar do ser humano no mundo dos seres vivos. Não sei se é meu difuso contato com a tradição analítica anglo-saxônica que me revelou ângulos novos de meus velhos conhecidos da fenomenologia e que representam uma pequena legião. Devo, no entanto, confessar que progressivamente fui percebendo que a hermenêutica sem a analítica pode ser cega, mas disso também se segue, para mim, que a analítica sem a fenomenologia hermenêutica ameaça ser vazia.
Ou melhor, a analítica deve, nas minhas inquietações, enfrentar-se com um velho trauma que percorre a filosofia até hoje, desde a modernidade, e que consiste na ameaça de um dualismo, na teoria da subjetividade, e que ainda é típica herança metafísica. Uma vez estabelecida a ruptura entre entendimento e sensibilidade, entre predicação e percepção, entre as palavras e as coisas entre consciência e mundo, como encontrar uma unidade para o conhecimento? Nisso permaneço fiel a uma marca que me vem de Heidegger.
É um escândalo estarmos ainda à procura de uma ponte entre a consciência e o mundo, pois desde sempre, enquanto somos ser-no-mundo, nos é dada uma unidade na pré-compreensão do ser e de nosso modo de ser. É essa pré-compreensão que acompanha, como dimensão antecipadora, toda a discussão de sentido e significado, toda a relação entre filosofia e conhecimento empírico. Nesse ponto, Heidegger nos deu uma lição insuprimível: toda a teoria do conhecimento deve ser acompanhada de uma analítica existencial como espaço para uma ontologia fundamental. Tugendhat, entretanto, me ensinou que as intuições de Heidegger devem ser levadas à clareza pela analítica da linguagem

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