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Há um triunvirato que comanda a modernidade: mercado, tecnologia e individualismo. São os três componentes que fazem os tempos modernos serem diferentes do tempos antigos e medievais. Esses três elementos juntos criaram uma era do fim do homem integrado à polis e também do fim do homem articulado às obrigações da suserania feudal. O homem ganha a cidade moderna, feita pelo mercado e pela tecnologia, e então se torna um indivíduo. Mas os tempos contemporâneos acrescentam um quarto elemento nesse quadro: o consumo de massa.
O esquema de produção fordista que criou a linha de montagem e articulou uma tal criação à geração de demanda, colocou o capitalismo de demanda espontânea para trás e democratizou o consumo de uma maneira inusitada. Criou a sociedade do consumo de massa. Daí para diante, a subjetividade passou a contar com outros pilares formativos, e obrigou os filósofos a repensá-la de modo radical. Nasceu aí uma transmutação da noção de indivíduo. E as fases da sociedade de consumo forjaram essa peça de teatro no qual reina uma evolução do individualismo. O enredo dessa peça é dada pelo quinto elemento caracterizador do mundo contemporâneo: marketing, essa figura realmente nova que nasceu do mercado para, em seguida, dar os próprios contornos para o mercado.
Os homens do marketing são os que fazem os produtos se tornarem realmente mercadorias, poderem ir ao mercado e se apresentarem como representantes do valor de troca, não mais o de uso, mas ainda assim com aspecto do que tem valor por conta do uso. Dão utilidade ao que não é mais mensurado, ao menos pelo mercado, como útil, mas apenas como elemento das mais da transação do equivalente universal, o dinheiro. Os homens do marketing estudam o mercado, e agora mais para forjar tendências que captar tendências. Por sua vez, filósofos e sociólogos estudam os homens do marketing para conhecer que tipo de animal contemporâneo substituiu o animal racional ou o animal político ou animal religioso por um animal tornado comum: o animal que consome. Observar o marketing é dar trela para as possibilidades de saber do que é feito do individualismo contemporâneo.
Escolhi cinco comerciais de TV ou Internet para expor os objetivos do mercado nas mãos do marketing, de maneira a conhecer melhor que tipo de subjetividade pode estar sendo gerada em nosso tempo, uma vez que há também aí um sexto elemento nessa situação toda: a mídia. Nossa sociedade é uma sociedade midiática. Ninguém passa por fora das informações da TV e, no quadro dos últimos vinte anos, da informação que pode ser reproduzida e co-produzida por cada um de nós – a da Internet.
O primeiro comercial apontado é o correspondente aos objetivos da fase inicial da época fordista. O que se quer nessa situação mercado é a ampliação do espaço de mercado. Que venha o mercado de inclusão, democrático, em que cada vez mais pessoas possam participar. Cria-se aí a diversidade de mercadorias, a setorização do mercado no âmbito de produtos semelhantes, e desse modo abre-se a ideia da possibilidade de se conseguir preço mais baixo. De fato, os preços caem. Mas não só pela demanda crescente de um produto, mas pela demanda crescente de produtos semelhantes que podem sempre trazer alguém com menos poder aquisitivo para o consumo de um produto que parece equivalente a outro produto, talvez mais sofisticado. Sabemos bem o quanto cada produto pode ter centenas de opções para que cada pessoa possa encontrar aquele que é compatível com o seu orçamento. Foi assim que o mercado de calças jeans e de carro cresceu, e foi assim que apareceu a democratização do luxo. A ideia é que todos podem ter algo que está “na jogada”, pois há preço para tudo. De fraldas até à prostituição, há faixas de consumo. O que importa é preço! E com isso ninguém fica de fora.
O segundo comercial apontado traz o consumo para a conformação da sociedade vebleriana. Entre outros, foi Veblen quem estudou o consumo do não necessário, ou seja, aquele consumo voltado para a diferenciação classista. É o consumo ligado ao status. Trata-se de um contrabalanço ao consumo que promete bom preço. Nesse caso, promete-se bom preço, mas com a mensagem a respeito de que o importante é escolher uma marca que se destaca, que é preferida, que está se tornando elemento de diferenciação social. Dentro desse espírito entra a ideia do trabalho do consumo na transmutação da inveja social. Não é importante só ter, mas aparecer e, dentro do aparecer, mostrar-se dono do sempre novo, do espirituoso, do bem humorado ou do “descolado”. O diferente precisa se por em voga. O mercado através do marketing se torna evangelizador: sempre tem a boa nova. E cada pessoa, sendo diferente, apresenta o seu consumo como motivo de inveja e diferenciação. A propaganda dos móveis Mobly escancaram essa situação: criam a dor de cotovelo no âmbito do consumo.
Mas também devemos lembrar da propaganda daquilo que “não tem preço”. Aquele comercial – o terceiro, da menina que perdeu o dente – onde se apresenta algo que não está à venda, algo do puro deleite, e em seguida liga tal pessoa a determinado cartão de crédito, um cartão para pessoas que sabem que há coisas sem preço e que, no entanto, são bem sucedidas e podem comprar todo o resto – o que tem preço. Nesse caso, nota-se também um outro componente da evolução do consumo: o consumo antes das marcas que dos produtos. Eleva-se o consumo ao simbólico, ampliando ainda mais seu espectro. Há mais que consumir agora que simples produtos, uma vez que a própria marca se torna mercadoria, indicando estilo, status, inteligência etc. Da marca que substitui o próprio nome do produto evolui-se para o simples cultivo da marca, de modo que as propagandas às vezes nem mostram o produto, mas são clips musicais em torno da marca. Ela é a artista em questão. Desenvolve-se aí a competição do marketing contra o marketing e este gera o “capitalismo estético”, falado por Gilles Lipovetsky. É a época em que o próprio capitalismo faz arte. A arte da propaganda se torna um braço forte e do que é efetivamente arte.
O quarto comercial é o que aponta para mais um traço de individualização e de individualismo: o gozo ou o “curtir” da experiência individual. Todos vão pela manada, pelo bando, mas alguns vão pela sua imaginação e pela sua ousadia de ver o que é inusitado, o impossível. Trata-se aí de um traço individual, ou de uma graça divina ou dom natural, ou de uma jogada da Fortuna (sorte). E essa pessoal realmente acaba fazendo o inusitado. Sai da mediocridade, sai da mesmice, escapa inclusive da ideia de ter de ficar fazendo inveja para outros e, assim, pode desfrutar solitária e destacadamente de bens, serviços e, enfim, poderes que outros não podem. A propaganda em questão é da avestruz que sem querer se vê com um Sansung de mensagem tridimensional instalado em seu rosto. O que vê é a sensação do voar. Mas a sensação num mundo de cultivo da prática da compra e venda de tudo que é sensório, onde só o sensório importa, acaba sendo o mundo real. E de fato, ao final, até aos olhos não só da avestruz, mas do bando, ela realmente alça voo. Ao fazer isso, deixa as outras lá embaixo, as não agraciadas pela divindade que distribui Sansungs, que são os shoppings e outros demiurgos da Sansung.
Essa propaganda da Sansung traz o individualismo no âmbito de uma seu componente importante: o curtir a si mesmo. O consumo não tem a ver só com preço ou com o ato de criar status. Aliás, não se trata mais de criar status. Trata-se de viver experiências que outros não sabem viver. Trata-se de ter o luxo que só os inteligentes sabem ter. O luxo fica à mão de todos, mas o verdadeiro luxo é poder se curtir. Amar a própria beleza, viajar, curtir o namorado ou namorada do mesmo sexo, consumir serviços individualizados. Nesse caso, a mercadoria que é mercadoria por ter valor de troca e não mais valor de uso, aparece como tendo só valor de uso. Há uma farsa sobre a recuperação da utilidade pessoal da mercadoria, uma vez que se trata de algo para o deleite privado de cada um. O indivíduo na sociedade desaparece em função para o indivíduo sem sociedade, sem laços, aquele que pode se dar ao luxo de curtir a si mesmo. Segue-se à risca os dizeres de Jesus na Bíblia: a oração é para ser feita na solidão e de preferência às escondidas. Se ela é o gozo de falar com Deus, que seja um ator de cada um em seu nicho. É o império de um hedonismo onde o ponto máximo da vida sexual é a masturbação. A felicidade não é algo a dois, mas exclusivamente algo de um subjetivismo e individualismo extremo. Nesse caso, aponto a propaganda “conceitual” da Natura, sobre o “viver o momento”. Nesse caso, aparecem situações individuais onde a impressão que temos é que a vida com outros deve ser curtida, mas no núcleo central da propaganda o que se mostra é o cultivo dos cinco sentidos em atos banais. Viver a vida e cultivar o banal num ato exclusivamente único e, de preferência, solitário – mesmo se acompanhado. Lamber o sorvete vivendo o momento é o sinônimo de felicidade. Usar produtos da Natura são para o cultivo de si, e pouco importa se outros vão ver isso ou não ou se se trata de algo necessário. O importante é que Natura proporciona a experiência sensória consigo mesmo. Natura é quase que um creme masturbatório.
Nossos tempos contemporâneos são caracterizados por cinco elementos: mercado, tecnologia, individualismo, consumo de massa, marketing e mídia. O resultado é uma situação em que o indivíduo, peça chave da doutrina política do liberalismo, vê a Carta dos Direitos do Homem de um modo novo, como Carta do Direitos do Indivíduo, que é, de certa forma, algo que Byung-Chul Han chama de a época do fim da alteridade, uma vez que todos são indivíduos no sentido de serem senhores de si como exploradores de si mesmos. Desaparece a dialética hegeliana do senhor e do escravo, desaparece o sartriano “inferno são os outros”, para surgir a doutrina do empreendedorismo, onde cada um é patrão de si mesmo, empresário de si mesmo e, portanto, o rei de um domínio que só vale por não ter ninguém mais que valha mais que eu mesmo. E isso está há mil léguas do que é chamado de egoísmo.
© Paulo Ghiraldelli, filósofo. São Paulo, 09/05/2017
Apêndice: outro comercial na tendência de curtir a si mesmo, onde a roupa é para lhe dar sensações individuais solitárias, como se fosse para viver num apartamento de espelhos – a célula de Peter Sloterdijk.
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