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Os sociólogos marxistas sempre disseram que o capitalismo tinha a ver com a expansão marítima, a ampliação dos mercados e, enfim, com o nascimento da burguesia, a classe social criada pelos habitantes do burgo que ficaram proprietários dos meios de produção diante dos proletários, sem esses meios. Os sociólogos weberianos e, enfim, o próprio Weber, enfatizou que o capitalismo viria de um motor espiritual, ou seja, a “ética protestante”, afinada com a indústria, comércio e o dinheiro a juros, tudo que pudesse mostrar o enriquecimento como marca da prosperidade e, por isso, sinal de escolha de Deus. Ora, por sua vez, Werner Sombart (1863-1941), amigo de Weber, teve uma ideia diferente a respeito do desenvolvimento do capitalismo. Para ele, tratava-se do desejo pelo luxo, em especial por conta do gosto e liberdade das mulheres.
Assim, se pudéssemos resumir de forma selvagem, diríamos: para Marx o capitalismo veio do mar, para Weber ele veio de Deus e, enfim, para Sombart, ele não teria existido da maneira que ocorreu sem as raparigas de vida (aparentemente) fácil, e a imitação levada a cabo pelas mulheres em geral.
A tese de Sombart ficou soterrada entre as duas outras, mais famosas. Isso ocorreu por razões diversas, inclusive por conta da trajetória política deste (um certo apoio ao partido nazista, em seu início). Mas essa sua tese nada tem de tola, muito ao contrário.
Sombart mostra em seu livro Luxo e capitalismo (1913) a mudança de vida das mulheres nas cidades célebres que levaram adiante o Renascimento italiano, especialmente Veneza. Ali as cortesãs deram o estilo e o espírito para todas as outras mulheres. Ampliaram o gosto pelo refinamento em termos de estudo e material para “cama, mesa e banho”. As mulheres criaram o luxo em diversos sentidos: do consumo obrigatório do açúçar passando pela ampliação da leitura, mercado editorial, sofisticação e diversificação da vestimenta, fabricação de casas de campo e da cidade com níveis diferentes de conforto e luxo. Sombart escreve: “gótico rima com erótico, mas só nas palavras, não no clima”. O clima para o amor era o campestre, o bangalô, a casa de campo, a casa burguesa com divisões, o perfume, as geleias, os sapatos, as roupas íntimas mais leves, o saneamento básico, a arregimentação de espaços aristocráticos mais abertos e menos ligados ao castelo medieval e às pequenas cortes. Mais tarde, as amantes quiseram se precaver de doenças – e se tornaram ou exclusivas, aumentando em número, e/ou reclamando da importação de ervas medicinais das colônias e de apetrechos sofisticados de banheiro em suas casas.
Todos os “homens de bem” tiveram amantes poderosas, que buscaram transformar suas casas em lugares atrativos, capazes de segurarem ali, por mais tempo, seus homens. Logo essas mulheres começaram a fazer com que as próprias esposas de seus amantes adquirissem novos hábitos. Elas, as esposas, passaram a imitar as putas. Adquiriram a prática de tomar banho e mudaram de estilo de vida. Elas erotizaram a Europa burguesa. A ideia de uma vida mais sensual (materialista, digamos), que atingiu até mesmo o papado, acumulador então de um gosto pelo recolhimento de objetos de variadas origens, mudou tudo na Europa, ampliando necessidades. Foi isso que fez com que as metrópoles intensificassem nas colônias a escravidão, a plantation e toda uma política de busca e ampliação de mercados – e aí sim o termo “capitalismo” ganhou o sentido que conhecemos.
Assim, das cortesãs às “mulheres de família”, o capitalismo nasceu, para Sombart, do império da liberdade da mulher e de sua imposição de seu gosto aos setores urbanos, burgueses, da velha Europa. Mar e Deus fizeram a sua parte, mas as putas e depois todas as mulheres é que deram a substância para o capitalismo. Sem elas, sem a liberdade que adquiriram no Renascimento, o gosto pelo luxo não teria nunca movimentado como movimentou a Europa toda. Elas deram ao mar os aventureiros e a Deus os devotos, todos suando sangue para fazer do mundo um lugar à altura de suas damas. Sombart coloca isso em números, e de maneira convincente!
Em determinada parte de Luxo e capitalismo ele lembra das primeiras experiência de se servir o café, então algo do luxo. Foi na corte de Luis XIV. Um pouco antes, as mulheres haviam introduzido o uso do açúcar, e daí então todo o refinamento de quitutes se fez presente nas casas, de modo a tornar doce todo e qualquer momento. O açúcar era servido nas casas de aristocratas e de burgueses ricos, e até mesmo de burgueses não ricos, em formas de animais ou objetos. E com aconselhamento médico. Os médicos nunca contrariam o capitalismo. O festival do açúcar deu o tom para o serviço do café, cacau e chá. Essas práticas de consumo provocaram, do outro lado do mundo, a venda de escravos aos milhares, movendo todo tipo de empreendimento que se fez no leito do capitalismo, inclusive o desenvolvimento da marinha, do militarismo e da ampliação de colonização. A mulher dominou todo esse processo ao colocar em sua casa espelhos, ao ampliar seu toalete, ao manter sua casa como um lugar tão luxuoso quanto a casa das grandes meretrizes e cortesãs, de modo a fazer maridos e amantes ficarem o mais tempo possível no interior. Essa suavização da vida, feita sob o controle direto da mulher, do açúcar e da sensualidade, foram o centro real do desenvolvimento capitalista. Tudo o mais se revolucionou a partir daí, do mercado suave a partir da sensualização da vida, imposta pelo modo como a mulher veio a dar o tom para o mundo. O capitalismo se fez sob regra feminina. Da vida das putas às das mulheres casadas.
Nessa época, tudo que saiu das mãos do homem foi para encantar e engrandecer mulheres, num percurso de luxo e sensualidade sem fim. A cada nova descoberta de perfume, de nova indumentária, de tecido exótico, de apetrecho do toalete, de tinturas e de invenções de conforto, mais a concubina, não raro mostrada abertamente ao lado do camarote da esposa, requisitou para ela o que a fez mais atraente. Acabaram incentivando a esposa às práticas do requinte. Uma tal competição elevou os gastos com o luxo a níveis inimagináveis. Madame Pompadour forneceu estilo, vida, modos e derrubou de vez tudo que tinha à sua frente ao dar continuidade ao estilo rococó vencedor. Os homens da corte se tornaram imitações do que as mulheres fizeram com elas mesmas. Até nas perucas!
Hotéis, restaurantes, teatros enormes e gigantescos bangalôs – tudo isso se fez em Paris e Londres ao redor do maior dos entretenimentos: a elegância da mulher. Sem ela, nada disso seria pensável. Em nome de suas ordens que implicaram em crescimento do erotismo, tudo se transformou. Eis a regra: nenhuma economia do luxo sem a mulher, e nenhuma economia capitalista sem a economia do luxo – Sombart deu esse tom à sua narrativa.
Para mim, Sombart mostra, indiretamente, que a tese feminista do “patriarcado opressor”, ligada ao capitalismo, se fosse algo realmente a ser levado a sério como um eixo histórico central, criaria um paradoxo. Sabemos bem que não foi pela opressão simples e direta que o capitalismo se desenvolveu, e isso Foucault explicou bem. Na verdade, foi pela ampliação da liberdade em todos os sentidos é que nasceu a “era do mercado”. Liberdade, sim, e não só do homem em relação à terra feudal, mas liberdade da mulher em relação a tudo, tornando-se imperadora da vida sob sofisticação, que não tardou ser trazida até mesmo para a América. No Novo Mundo as mulheres, inicialmente, cavalgavam, rezavam e cuidavam dos filhos. Mas em pouco tempo as americanas adotaram o comportamento das italianas e francesas, metendo medo nas inglesas, menos afeitas ao comportamento liberal.
A história de luxo pró-capitalismo contada por Sombart é um dado a mais no tabuleiro da explicação a respeito da modernidade. Um dado que certamente, sendo a favor da mulher, se coloca como pedra no sapato das feministas e fanáticas de “estudos de gênero”, se adeptas da “hipótese repressora” que Foucault estraçalhou.
© 2020 Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. Uma versão anterior foi publicada em 2017.
Sobre a foto da estátua e sua relação com o açúcar, ver aqui!
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