Publicado na Folha de São Paulo 12 de julho de 2005
O filósofo analítico norte-americano Richard Rorty elogia passagens de “O Ser e o Nada”, mas ataca a tentativa fracassada de fundiro marxismo com o existencialismo e o apoio dado ao ditador Josef Stálin
Um dos principais filósofos norte-americanos, Richard Rorty fala à Folha sobre seu primeiro contato com a obra de Jean-Paul Sartre e discute a atualidade de seu pensamento. Ressalta, porém, que “a recusa de Sartre em romper com o stalinismo causou um dano real à vida intelectual francesa”.
Autor de, entre outros, “A Filosofia e o Espelho da Natureza” (ed. Relume-Dumará), Rorty chamou a atenção para a filosofia norte-americana mais que qualquer outro filósofo atual, dialogando com Jürgen Habermas, Jacques Derrida e outros. Lecionou em várias universidades dos EUA e se aposentou recentemente na cadeira de literatura comparada da Universidade Stanford.
Folha – Seu livro “A Filosofia e o Espelho da Natureza” começa com filosofia analítica, mas, de modo surpreendente, finaliza com várias menções a Sartre. Qual a razão de ter escolhido Sartre? Que tipo de dívida o sr. tentou pagar ali?
Richard Rorty – O ensaio “O Existencialismo É um Humanismo” teve um grande impacto sobre mim quando o li pela primeira vez, quando adolescente. Fiquei impressionado com seu tratamento quase que freudiano “do viscoso e pegajoso” em “O Ser e o Nada” e por algumas de suas ficções mais curtas.
Assim, sempre pensei a respeito de Sartre como um escritor bem interessante. Mas acho seu último trabalho mais ou menos impenetrável. Sua tentativa, na “Crítica da Razão Dialética”, de tratar o existencialismo como um “enclave dentro do marxismo” foi um completo desastre. Nunca fui capaz de atravessar os obstáculos do seu livro sobre Flaubert ou sobre Genet.
Folha – Seu artigo autobiográfico “Trótski e as Orquídeas Selvagens” mostra novamente Sartre, mas nesse caso o sr. fala sobre política. O que pensa sobre o Sartre filósofo e o Sartre político?
Rorty – O apoio de Sartre a Stálin talvez seja mais desculpável do que o de Heidegger a Hitler, mas não muito mais. Ambos foram egomaníacos demais para poderem voltar os olhos aos erros de seus passados e reconhecê-los como tais. Mas pensadores originais são, freqüentemente, idiotas políticos. As observações de Nietzsche sobre eventos políticos de seu tempo são tão insensatas como as observações de Sartre e de Heidegger sobre os eventos que os rodearam. A recusa de Sartre em romper com o stalinismo causou um dano real à vida intelectual francesa. Sua atitude desdenhosa em relação a Raymond Aron, por exemplo, é difícil de perdoar
Folha – O que era o tema “Sartre e os Estados Unidos” quando o senhor era um jovem filósofo?
Rorty – Muitos professores americanos de filosofia de minha geração leram Sartre quando eram jovens e não raro aconselharam a leitura de tais escritos a seus alunos.
A recusa de Sartre em romper com o stalinismo causou um dano real à vida intelectual francesa.
Mas, mais tarde, aqueles de nós que encontraram nele coisas interessantes vieram a pensar que, se alguém ensinou Nietzsche e Heidegger, não seria verdadeiramente necessário ensinar Sartre também. A maioria das boas coisas em Sartre poderia ser encontrada naquelas duas outras figuras maiores.
Folha – Mas o que vale ser lido de Sartre hoje?
Rorty – Há muitas partes de “O Ser e o Nada” que são brilhantes e ainda valem ser lidas. Mas o existencialismo nunca foi nada mais do que uma invenção jornalística (semelhante ao pós-modernismo, nesse sentido). Duvido que, daqui há anos, as histórias da filosofia do século 20 usem o termo existencialismo como uma classificação. Agrupar Kierkegaard, Nietzsche, Jaspers, Heidegger e Sartre sob uma mesma rubrica não é algo muito informativo
Folha – E as relações entre pragmatismo e existencialismo? Vale a pena falar dessas correntes hoje para os jovens que lidarão com a filosofia de amanhã?
Rorty – O pragmatismo dispensa as disputas metafísicas enquanto elas não fazem nenhuma diferença prática. As figuras tradicionalmente chamadas existencialistas criticam a metafísica como uma tentativa auto-enganosa de escapar do tempo e do inesperado. As duas linhas de crítica da tradição filosófica ocidental se complementam bem.
Penso que ambas serão vistas pelos historiadores como uma parte de um longo período de repúdio das tentativas de “ver as coisas sob o aspecto da eternidade”; um repúdio que começou com o historicismo de Hegel e continuou nos dois séculos seguintes.
Vejo os movimentos intelectuais chamados existencialismo, pragmatismo e pós-modernismo como três variedades do combate ao platonismo, do pensamento filosófico não-metafísico. Os mais importantes filósofos associados a tais movimentos -Nietzsche, James, Dewey, Heidegger, Sartre, Derrida e Foucault- são todos muito importantes para a leitura. Os indivíduos, por sua vez, são mais atraídos por alguma versão do antiplatonismo do que por outra, mas isso se deve, de um modo mais geral, às próprias idiossincrasias de um e de outro leitor, dos interesses de cada um.