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Publicado na Folha de São Paulo 7 de março de 2013

Há dois elementos centrais na educação ocidental: o pum e o papa.

Agostinho foi o pensador que lidou com o que o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk chamou de “a semântica do peido”. Agostinho era encantado com as proezas de controle fisiológico. Sua interpretação do pecado original atravessa esse assunto.

Adão e Eva desobedeceram a Deus ao comerem do fruto da árvore do conhecimento. Como membros do paraíso, se tornaram independentes de Deus. A punição imediata foi que eles próprios, em seus paraísos pessoais –seus corpos– viram como é triste não possuir controle. Tornaram-se vítimas da ereção involuntária e outros descontroles corporais. O homem e a mulher sentem vergonha quando agem como um tipo de fantoche maluco.

A luta contra essa sina foi uma meta de Agostinho. Ele se fez herdeiro do “conhece-te a ti mesmo” e da busca do “governo de si” socráticos tanto quanto esse projeto esteve ligado aos estoicos, epicuristas e, por meio de Paulo, aos cristãos. Sua ideia básica: mais que um exército que possa peidar junto, temos de ter uma humanidade com autolimites claros.

O papa é o chefe da igreja e o representante da divindade na Terra, dizem os católicos. Sendo assim, é aquele que, ao menos em tese, seria o homem mais apto a controlar seu pum. Com efeito, dificilmente, os papas se desviam de uma vontade férrea e um autocontrole fenomenal. Bento 16 não fugiu à regra. Falou que renunciaria caso não pudesse seguir sua missão e levou a cabo seu dito.

Foi usando dessa força filosófica de seus membros que a igreja contribuiu –não sem dor e sangue– para o caminho civilizatório, especialmente percorrido pelo Ocidente. Em muitos lugares, nos tornamos de tal modo donos de nós mesmos que pudemos deixar nossas juventudes pichar nos muros “É proibido proibir”. Por que ousamos fazer isso?

O sociólogo Norbert Elias explicou mais ou menos assim: chegamos a tal ponto de sofisticação no autocontrole que pudemos criar zonas temporais e espaciais de “relaxamento dos instintos”. A praia é um lugar que mostra bem isso. Até o menos educado já não tem qualquer ereção no meio de outros humanos quase inteiramente nus.

Todavia, se Agostinho e Elias vissem o Brasil, diriam o seguinte: as coisas não estão completas. Muito do que já é dispensado no Primeiro Mundo, aqui ainda é necessário! Tanto isso é verdade que o Estado fez uma esdrúxula campanha nesse Carnaval: “urine no banheiro”. Creio que gastamos mais levando o pipi das pessoas ao lugar certo do que dizendo que essa parte do corpo precisa ser protegida para não pegar o HIV.

Eis aí esse problema todo traduzido politicamente: queremos que todos sejam livres e responsáveis, de modo a termos uma sociedade liberal, com as regras coercitivas mais brandas possíveis, mas, ao mesmo tempo, não nos responsabilizamos pelos animais, não cuidamos do espaço público, não ensinamos a nossos filhos os chamados “bons hábitos” e não cedemos lugar para os mais velhos em ônibus.

E mais: bebemos e logo em seguida saímos de carro. Isso sem falar o quanto desejamos todos usar da “carteirada”. No Brasil, parece que estamos a anos-luz do papa. Ainda não somos donos de nosso próprio pum.