Publicado na Folha de São Paulo 8 de setembro de 2017
Karl Marx ficaria tentado a olhar com bons olhos para o projeto de lei Escola Sem Partido.
O projeto é inconstitucional e fere a liberdade de expressão. Também é pedagogicamente inviável, pois transformaria a escola em um cemitério. Aula não é discurso, mas reflexão e investigação conjunta, o que implica liberdade. Quem teve boas aulas, sabe disso.
Marx teve boas aulas. Então, por que ele desejou que a escola só ensinasse aquilo que pudesse ser ensinado sem que preferências doutrinárias e políticas aparecessem?
Marx bebeu do positivismo do século 19, que acreditava que havia objetividade e neutralidade em determinados saberes, e que então estes deveriam estar na base curricular da escola.
Essa aspiração está no senso comum de nossa época. Há algo disso entre os que acham correto o projeto Escola Sem Partido, daí seu êxito em conseguir adeptos.
Acreditam que ao menos pela forma que são apresentados, os conteúdos do ensino podem estar longe de algo que soe como doutrinação. Querem liberdade para os filhos, mas, paradoxalmente, pedem que uma polícia política a institua!
Os que se opõem ao projeto Escola Sem Partido, por sua vez, contra a aspiração por neutralidade do saber e da escola, bradam que “todo saber é político” e que “toda escola é ideológica”.
Ora, se fosse assim, poucos poriam seus filhos na escola. Não são muitos os que querem ver seus filhos, ao menos na escola, sob a batuta de vomitadores de ideologia.
Os adultos querem que seus filhos, na escola, aprendam “o que se deve saber”.
Em uma linguagem mais técnica da filosofia e da pedagogia chamamos isso de “os clássicos”.
O clássico capta uma experiência particular, geograficamente localizada e historicamente datada, e a faz universal, mantendo sua singularidade.
Assim põe, ao seu modo e sob sua forma, algo equivalente ao que seria a força da objetividade e neutralidade do saber. Não é que ele escapa do mundo, mas, ao contrário, abarca o mundo, enche de admiração os melhores corações e os intelectos mais argutos e, por determinação própria, cria sobre si mesmo uma barreira contra a distorção política e ideológica.
As distorções são sempre menores que a força interna dos clássicos.
Machado de Assis é um clássico da literatura mundial. Você pode posicioná-lo como politicamente liberal, mas isso pouco importa, pois a força de sua escrita está no manejo da língua, na capacidade de ser um Schopenhauer irônico, de chocar e embevecer.
Um japonês inteligente e sensível em Tóquio, ao ler Machado hoje, sabe o que foi estar no Rio de Janeiro escravocrata do século 19 e ser sensível e inteligente, mas também sabe que o recado de Machado serve para ele.
A força do gênio se impõe e funciona como se a aspiração por objetividade e neutralidade, que todo bom saber quer alcançar, se realize de uma maneira peculiar.
Então, na grade curricular da escola do menino japonês, quando ele for estudar matérias que falem da cultura ocidental, pode ser que Machado de Assis tenha de ser incluído junto de Nabokov ou Henry James.
Quando entendemos que a aspiração por neutralidade e objetividade que todo saber quer realizar se faz quando ele se transforma em um clássico, começamos a compreender a origem da grade curricular da escola moderna.
Isso é reflexão. Mas gurus não querem reflexão, apenas mandam gritar “é golpe” ou “não é golpe”. Não é comigo!