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As séries americanas Dr. Kildare, Plantão Médico, House, The Good Doctor e tantas outras. Ou a excelente nacional, Sob Tensão. E assim vamos de hospital em hospital. Por que as séries televisivas com médicos e casos de hospitais empolgam? Talvez a resposta seja simples: só os médicos ainda estão próximos do que é a experiência, a vivência, e por isso mesmo só a eles reste contar alguma história.

Os médicos são aqueles que testemunham a vida, a morte e o sofrimento. Os últimos a ainda lidarem com o corpo enquanto carne. São candidatos a não caírem na abstração máxima que tudo iguala. Uma vez que o corpo particulariza, e a dor e morte singularizam, os médicos seriam os capazes de guardar essa dádiva que procuramos para sermos humanos. Parte da sociedade acredita que neles reside, ainda, o campo de acontecimento da experiência, aquilo que seria propriamente humano.

Será que eles são tudo isso?

Nosso mundo é regido por abstrações, isto é, elementos que cumprem funções universais e que não podem nos contar nada de novo. Esses elementos pertencem ao contexto do capitalismo: a mercadoria, o dinheiro e as imagens geradas no mundo digitalizado. Todos os três nos empurram para relações que negam a experiência e a vivência. São elementos genéricos e abstratos, não acumulam experiência. Só há experiência, é claro, do particular. E as experiências mais sagradas são as que vão além disso, que adentram para o campo do singular.

As mercadorias não vão para o mercado por outra coisa senão para serem trocadas. E para tal, perdem a particularidade e se igualam em valores que são valores de troca. O dinheiro é o equivalente universal, e ele próprio se torna uma mercadoria especial. Trata-se de uma mercadoria que é emprestada e nunca vendida. Por sua vez, a digitalização é a vida admitida como incorpórea. Desse modo, uma vida é qualquer vida e nenhuma em particular. Em todos os casos, a experiência é impossível. O homem que emerge desse triunvirato carrega tais características, o de ser vazio de experiências.

Corre então uma espécie de nostalgia sobre a face da Terra no capitalismo. Haveria em algum lugar os que não foram absorvidos por essa situação pasteurizada. Os médicos? Ora, os médicos reais talvez estejam em condição até pior que a de outros bípedes-sem-penas por aí. Mas os médicos da TV, estes não, eles seriam os últimos narradores das últimas histórias dos últimos seres corporais. No horizonte do fim da vivência, da incapacidade de experiência e, enfim, da adoção da vida indolor, a ficção sobre os médicos os põem na tela como os que tiveram, factualmente, esses últimos momentos. São os últimos homens capazes de narrar histórias.

Não importa que nenhum médico real, hoje, possa ser um narrador. O que importa é que se a TV busca o último narrador, encontra na ficção a respeito de hospitais e médicos aquilo que não poderia ter sido perdido. O encontro com a vida, com a dor e com a morte. Cada vez que alguém aplaude uma série de médico, aplaude essa esperança, de que em algum lugar do mundo aquilo que se passa ali no cotidiano médico ainda seja real, possível. A experiência humana ainda ocorre – é o que quer e o que se pensa quando se está diante da TV.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo.

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