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Bruno Latour

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Heráclito não acreditava falar por si mesmo. Aliás, o “si mesmo”,  esta expressão, é uma invenção nossa, dos modernos, não dos antigos. Heráclito entendia que o logos do cosmos utilizava de sua boca para falar de sua organização própria, a harmonia cosmológica. O Humanismo moderno nos tirou essa possibilidade. O homem passou a ser não só ator do mundo, mas o próprio palco. Então, se as coisas querem falar, hoje em dia, precisam aparecer num parlamento e buscarem seus representantes. As coisas precisam de deputados representantes tanto quanto os homens. Nasce aí o “parlamento das coisas”, de Bruno Latour.

Os animais, a floresta, o rio, prédios históricos, o ar e tantas outras coisas precisam de representantes. E eles têm aparecido, tanto quanto os representantes do homens. O parlamento das coisas está montado. Não é um parlamento que passe pelo voto. Os próprios parlamentos políticos fazem parte do grande parlamento das coisas. E as coisas estão tentando falar de novo, isso é uma verdade que podemos notar.

As coisas estão falando porque o homem precisaria delas e, então, falariam segundo o interesse humano? Não! Falamos pelo nosso interesse, não raro, contra as coisas. Quando as coisas falam, elas falam pelos seus interesses.

Nenhum de nós que protege cachorros encontra razões para assim agir. Alguns de nós tenta encontrar justificações “humanistas” para tal: fim da crueldade, direito à vida, amor pessoal etc. Que nada! Basta examinar um pouco as falas nossas a respeito de proteção animal, quando querem ser racionais ou parecerem sérias, e veremos que são falas humanas, e que as cosias não falam assim. Elas, as coisas, têm seus representantes, e isso ocorre exatamente na medida em que conseguem se colocar nesse parlamento, com narrativas próprias. A maior parte dos ecologistas que tenta convencer outros a protegerem qualquer coisa por motivos racionais se dá tão mal quanto aquele que fala da salvação de um prédio tombado a partir da racionalidade de se ter história. Árvores e prédios surgem no parlamento. Se colocam com os seus imperativos. Quando vemos, estão no jogo político do parlamento das coisas e levam muitos de nós para tal.

Observando Peter Sloterdijk talvez tenhamos mais condições de entender o “parlamento das coisas” de Bruno Latour do que se olharmos para ele mesmo. É que Sloterdijk apresenta uma história na qual a natureza já foi incorporada e colocada no mesmo plano do que antes cabia na história. Um fluxo migratório de pessoas é também um fluxo de micróbios e vice-versa. Quando contamos a história assim, é porque o parlamento das coisas já está dando o tom para as narrativas várias que correm por aí. Olhar o mundo pela perspectiva do urso panda, pela do vulcão Etna e pelo das Torres Gêmeas (que desapareceram) nos conta uma história menos humanista e mais verdadeira que qualquer outra história.

A noção de “impacto ambiental” é uma reivindicação do parlamento das coisas. Claro que, muitas vezes, o cálculo do impacto ambiental, por ser cálculo, já se transforma em uma narrativa humanista. Mas vários elementos dessa narrativa, não raro, podem se libertar e fazer gerar sua própria visão das coisas. O cálculo é feito a partir do interesse humano, mas a ideia de impacto ambiental também pode ser pensada a partir do impacto sobre si mesma, ou seja, de quanto certas coisas querem conhecer o modo que ficarão impactadas pela mudança de lugar de outras coisas. Nesse caso, teremos parlamentares capazes de falar das coisas pelo viés não humano. De certo modo, é assim que estamos funcionando.

O ano de 2020 vai ficar na história como a época da emergência clara do parlamento das coisas. A máquina capitalista imparável teve de parar. Por pouco tempo, mas o suficiente para notarmos que uma narrativa humanista não faz mais sentido. Se o capital funciona como um sujeito autômato (Marx), não seria pela decisão do homem que ele poderia realmente parar. Mas parou, por ordem e decisão das coisas. O parlamento das coisas decidiu que parássemos todos e entrássemos em confinamento, às vezes aceito e às vezes não aceito, conforme o país e o tempo. Desde o início do capitalismo, nem mesmo nossas guerras realizaram tal proeza.

Infelizmente, é muito provável que venhamos a esquecer o que passamos. Retomaremos a escravidão diante do sujeito autômato. Mas, para alguns, ficará a visão paradisíaca dos tempos de parada. Anselm Jappe descreveu assim a experiência que o parlamento das coisas fez valer:

  • “A diminuição das atividades poluentes, ainda que parcial e por apenas algumas semanas, reduziu significativamente as emissões de gases nocivos à saúde e ao planeta. As águas dos canais de Veneza e da baía de Nápoles ficaram límpidas, e alces passearam por outras cidades italianas. Cangurus saltaram por ruas e calçadas na Austrália. O ar ficou de repente respirável em grandes metrópoles que antes sufocavam, e o barulho praticamente desapareceu.116 Na Índia, pela primeira vez em décadas, se pôde contemplar os picos do Himalaia a centenas de quilômetros de distância”. Jappe, Anselm. Capitalismo em quarentena (Crise & Crítica) (p. 125). Editora Elefante. Edição do Kindle.

E em seguida, teceu uma avaliação junto de uma pergunta esperançosa: “Foi com alegria que vimos, por todos os lados, canteiros de obras fechados. Mesmo que por um breve momento, vislumbramos um mundo diferente. Será que esse mundo pode durar? Haverá outra saída que não a de redobrar a loucura, para recuperar o tempo “perdido”? (Idem, ibidem).

Se soubermos ouvir o que o parlamento das coisas tem a dizer, talvez possamos recuperar a sabedoria de Heráclito de modo a perceber que há algo para além de nós que fala, e fala em alerta em relação a tudo, inclusive em relação a nós, que também integramos o grande parlamento.

© Paulo Ghiraldelli, 63, 2020, a partir de texto de 13/03/2017

Veja: aqui entrevista com Bruno Latour (2017)

Veja: aqui entrevista com Bruno Latour sobre a pandemia (abril de 2020).[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]