Publicado na Folha de São Paulo 16 de janeiro de 2018
A mulata Globeleza desapareceu. As duas. Não cabe mais. O nu e a exposição da mulher são alguma coisa que sobrou para o celular: “Mande nudes.” Na TV, só se vier recheado de salamaleques pseudocultos, como no caso do programa “Amor & Sexo” —aliás, muito chato.
Até mesmo a propaganda de cerveja adotou antes a lição moral que a chamada, pelos meus pais, de “mulher boazuda” (também usei essa expressão).
Até pouco tempo, os homens das agências de marketing diziam que um cachorro da raça golden retriever e os decotes generosos eram as duas coisas que faziam os homens sorrir. A distância do golden retriever como chamariz cresceu tanto em relação aos seios que o segundo lugar não conta mais. Ser fofo, agora, é ser filhote.
Aqueles que estão acostumados a manuais de sociologia –e, por isso, não pensam– estão dizendo por aí que vivemos uma época de “puritanismo americano”. Outros, então, alimentados por literatura barata, vão falar em hegemonia do “politicamente correto” (ou “ditadura”, o que é erro até maior). Mas uma visão histórica desmente isso.
Os anos 60 trouxeram a abertura para um novo contrato sexual. Ele não se fez. Só agora estamos realmente pondo a sua minuta na mesa. Entre os anos 70 e 90, um dos resultados dos 60 foi o lento e sazonal aparecimento de roupas andróginas e de moda de cabelo e outras coisas chamadas “unissex”.
Agora, a androginia saiu do campo do adorno e foi para o campo mental. Há uma mentalidade andrógina no ar. O amor deixou lugar aberto para o seu original, Eros, e este nunca foi outra coisa senão o rei da androginia.
Sempre fez pessoas gostarem de pessoas, e não homens gostarem de mulheres ou vice versa. O mundo ocidental jovem está povoado de pessoas; pessoas cuja genitália (ou não genitália) deixou de dar comando unificado para o amor.
Tudo isso se espelha maravilhosamente no embate entre o discurso de denúncia de assédio, representado no momento pela fala de Oprah Winfrey, e o manifesto contra o “denuncismo”, representado pela assinatura de Catherine Deneuve. As moças do cinema saem na frente!
Ao contrário do que se anuncia, nada aí diz respeito a mais um debate do “feminismo” contra o “machismo”. O confronto é a confecção do novo contrato sexual —finalmente!
O que está na minuta do contrato é o novo, o inusitado: o “segundo sexo” (Simone de Beauvoir) está delineando o que deve ser o macho, o masculino ou o homem, sem perguntar nada aos homens. Isso é o inédito. Essa é a marca desse movimento, a vitória da mulher.
Ambos os movimentos são progressistas. A cama é um lugar horizontal, e ambos os manifestos querem que isso prevaleça. Não há razão para clamar por verticalismos, jogos de poder, status, para se ir para a cama nem para sair dela.
Oprah quer que a lei contra assédio possa ser cumprida, pondo nos eixos os homens que não sabem ler a linguagem corporal das mulheres, que dizem “sim” ou “não” sem precisar falar. Deneuve quer que os homens que sabem ler a linguagem corporal da mulheres possam ter chance de o assim fazer, sem ganharem a injusta pecha de tarados.
O homem, aqui, não apita nada. Ele está sendo moldado por mulheres da América e da Europa e vai ter de entrar no novo figurino. O pacto sexual cuja minuta é apresentada agora vai ser assinado por ele, mas sem que seja consultado. Se ele teimar, o contrato ficará valendo até mesmo sem sua assinatura. O certo é que ele nem perceberá, pois já estará mudado quando acordar.
Em mundo assim, a mulata Globeleza precisa mesmo desaparecer. Para volta a surgir nua, deverá esperar um novo homem que saiba entender quando a sua nudez estará se dirigindo para ele ou não. Isso se ele ainda tiver algum interesse por nudez.
O homem tirado desse novo pacto, pelas mulheres, vai ter que ser um leitor melhor, inclusive para entender que golden retriever e androginia vem antes que ele. A sensibilidade natural é histórica.
A ideia de que as pessoas dizem “sim” quando estão dizendo “não” terá de ser mais bem percebida. O que Deneuve e Oprah estão afirmando é que a burrice precisa perder espaço.