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Foucault é o autor da constatação esquisita “a alma é a prisão do corpo”. Foi assim que eu o entendi e foi sob o impacto dessa sua frase que escrevi o capítulo oito do meu livrinho A filosofia como medicina da alma (Manole, 2012). Escrevi no sentido de contrariar aqueles que estavam lendo Foucault como se ele fosse alguém que estivesse falando de “corpos dóceis” como o que é ajustado como uma mera máquina. Mas Foucault nunca esteve interessado em máquinas. Ele sempre esteve interessado em algo que hoje o filósofo germano coreano Byung-Chul Han chama de “psicopolítica”. Foucault viu o homem como fruto de ‘subjetivação profunda’, e que se o poder atinge o corpo do homem, como de fato atinge, o faz pelo acesso à alma.

Em suma: claro que Foucault mostrou o corpo nas malhas do poder por meio do seu conceito de “biopolítica da população” e “anátomo política do corpo”, mas também investiu nas pesquisas sobre subjetivação, sobre construção do eu por meio do “cuidado de si”. Assim agiu de modo a mostrar que só faria sentido pensar o poder atuando na produção de corpos ajustados se um tal ajuste fosse por meio de decisões de autonomia conquistada, ou seja, o surgimento do homem como sujeito. Sujeito é, sim, antes de tudo, sujeitar-se.

Mas o caso é que Byung-Chul Han acredita que Foucault, mesmos vendo tudo isso, não teria de fato feito o “giro” em função da psicopolítica (Psychopolitik, S. Fischer Verlag GmbH, 2014). Ele vincula a psicopolítica como o melhor campo para a dominação na fase em que o capitalismo abraça o que ele chama de neoliberalismo. Para ele, trata-se da época em que o poder sai do modelo hegeliano do senhor e do escravo para agir sobre o homem que é ‘empresário de si mesmo’, e que então amplia a exploração por meio da auto-exploração, onde atua coercitivamente sobre si mesmo, chamando a isso de liberdade. Ora, penso que Foucault não estava interessado exclusivamente no “capitalismo” e sim em histórica de longa duração, olhando a modernidade de uma maneira ampla. Por isso mesmo, não quis falar do poder vinculado a algo que, no marxismo, virou um nome restrito a “modo de produção”. Foucault entrou pela psicopolítica, sim. “Anátomo politica do corpo”, “biopolítica da população” e “hermenêutica do sujeito” devem ser vistas como partes de um mesmo projeto de entendimento do homem na sua relação com o poder, mediado pela subjetivação. Foucault chegou à idea da alma como prisão do corpo exatamente porque viu claramente os problemas de coerção no âmbito da auto-coerção. Só que não quis, como Byung-Chul Han parece desejar, tomar as coisas como que sendo uma crítica neomaxista ao capitalismo.

Em determinado momento de sua crítica a Foucault, Han reconhece que este voltou-se para a história do eu. Mas, ainda assim, acusa o filósofo francês de ter feito tal incursão em busca de uma ética, desprezando as questões do poder, antes trabalhadas. Na conta de Han, Foucault fez uma separação radical entre técnicas de poder de um lado e tecnologias do eu de outro, e então não teria captado a “técnica de poder do regime neoliberal”. No caso do neoliberalismo, segundo Han, o que temos é o surgimento de um novo sujeito, o “sujeito de rendimento” ou o ‘empresário de si mesmo’, que não é o homem que se faz esteticamente, como em Foucault. Han acha que liberdade e exploração são uma coisa só no neoliberalismo, e que Foucault não se deu conta disso.

Sinceramente, é difícil aceitar essa tese de Han. Podemos fazê-lo se tomarmos Foucault como uma pessoa diferente em cada livro. O fato dele não tecer grandes conclusões entre investigações sobre biopoder e investigações sobre a estetização do eu nos processos de subjetivação profunda, não quer dizer que Foucault não pudesse relacioná-los. O que fica em suspenso, claro, é que se Foucault tivesse escrito textos amarrando melhor um polo e outro, tivesse que chegar às mesmas conclusões de Han, no modo como este vê a psicopolítica.

Acredito que ainda hoje a dispersão dos escritos de Foucault, sempre feitos a partir de pesquisas contínuas, deixe muitos de seus leitores, inclusive os bem qualificados, não relacionando as coisas como elas podem ser relacionadas.  “O corpo é prisão da alma” é um desmentido que deveria atingir Han e um fio condutor para a leitura de um Foucault que sempre exigiu leitores capazes de fazer suas sínteses sem precisar dele mesmo. O corpo é prisão da alma indica um Foucault que viu os processos psíquicos como que atingidos quando se atinge o corpo. Eram e sempre foram os processos psíquicos que interessavam a Foucault.

© Paulo Ghiraldelli Jr., 63, filósofo. São Paulo, 16/09/2020, a partir de texto de 25/04/2017

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