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“O que é que ele viu nela? Meu Deus, a mulher não é bonita, não é simpática e ainda por cima falta-lhe inteligência até mesmo onde qualquer outra mulher a tem!”. Não raro escutamos frases assim e, ao ponderarmos bem do que se trata, acabamos concordando com a sua verdade. Não conseguimos saber o que fez um homem bonito, simpático e inteligente amarrar-se no traste descrito pela frase. Então, recorremos ao consolo do ditado popular, como um subterfúgio da razão: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”.

O senso comum pode ficar com o ditado popular, mas a filosofia pede mais que isso.

Stendhal foi um daqueles que considerou o amor entre casais como inexoravelmente articulado à ilusão. Quem ama avalia o amado de um modo especial, conferindo-lhe atributos que, enfim, ele não possui de modo algum. Ou seja, se não fosse o amor, a valoração não apareceria. Quem ama, ama os defeitos e, enfim, não tarda em fazê-los desaparecer ou até mesmo em transformá-los em qualidade. O amante vira do avesso os vícios da amada, enxergando-os como virtudes. Freud tentou explicar todo e qualquer amor por essa via, a da sobrevalorização que leva à ilusão.

Freud caracterizou o amor como o resultado de processos de sublimação. Na origem, a libido – a energia do desejo pelo prazer – se satisfaz diretamente com aquilo que é a alimentação da mãe e o aconchego do seio e similares. Depois, esses desejos passam a ser satisfeitos de modo mais sofisticado, e então criamos nossos objetos de investimento libidinal em produtos e atividades da cultura. Assim, o amor erótico adulto nada é que uma especificidade desse investimento, mas em uma determinada pessoa. Então, ele implica num processo de valorização. Damos valor a esse objeto que escolhemos para a satisfação, essa pessoa que é o amado ou a amada. E esse valor, como é conferido por nós, pelos amantes, é arbitrário e, então, ilusório. Que se fique atento: quando se ama se ama aquilo que pouco é o que parece. É o que Freud ensina.

Essa visão de Stendhal e de Freud está em acordo com a perspectiva metafísica tradicional que, segundo Nietzsche, já faz parte do nosso senso comum – uma espécie de platonismo popular. Em termos bem gerais e, enfim, como ela se mostra no vocabulário do senso comum, trata-se da ideia de que o que está à vista não é o real, pois o real se esconde e só deve aparecer após algum tipo de trabalho “crítico”. O amor seria um tipo de valoração que cria um véu sobre o amado, melhorando-o  demais. Essa concepção é posta em questão pelo filósofo Irving Singer, um veterano das investigações sobre filosofia do amor.

Irving diz que o amor e a valoração são interconectados. Ele afirma que há dois processos de valoração: appraisal e bestowal. Freud teria vinculado o amor apenas ao primeiro, esquecendo-se do segundo, que realmente seria a chave para completar o quadro de entendimento do amor.

Appraisal é, segundo Singer, “a habilidade para descobrir valor em si mesmo e outra pessoas”. Bestowal é um modo de criar valor, não o mesmo tipo de valor como em appraisal, mas um novo tipo de valor. Bestowal é uma criação de valor por meio da relação estabelecida, a relação amorosa. (1) Eis appraisal: podemos avaliar outra pessoa como excelente e tirar proveito de nossa relação com ela por tudo que ela tem a oferecer. Isso existe no amor, mas, enfim, em muitas outras relações. Posso avaliar e valorar meu sócio em negócios. Mas, quanto ao amor, há algo mais, há bestowal, ou seja, há a emergência de valores novos que são frutos da própria relação. Appraisal continua a existir sempre. Mas a relação de amor transcende isso porque ela permite que apareça o valor dela mesma,  criado, quase que desconsiderando o que se pode ganhar ou perder com o valor dado por appraisal. A própria relação de amor é a criação nova.

Freud, na conta de Singer, explica o amor – corretamente, diga-se de passagem – como uma distorção de appraisal, uma superestimação do amado a partir de interesses individuais egoístas. O amor, assim, é a ilusão de appraisal. Freud não pecaria por isso, e sim por ficar só nisso.

Singer não diz, mas eu posso talvez dizer que bestowal está em consonância com o que o filósofo americano Robert Nozick diz do amor. O amor  enquanto uma relação cria algo para além do eu e do tu, ele cria um “nós”. O nós não é apenas lingüístico, mas tem presença ontológica garantida. O nós consubstancia a presença de um novo valor no mundo, que é a própria relação de amor como algo inédito que se estabelece no cotidiano. Isso renova completamente cada um dos participantes do nós, e os faz valorar tudo de maneira nova. Pode-se confundir isso com appraisal, mas, com um pouco de discernimento, vê-se que se trata de algo diferente, algo que foi gerado a dois e, então, posto em cada um. Em forma de casal, cada um pensa diferente do que pensava quando se colocava sem a existência do nós ou apenas como uma das partes do nós. O casal faz projeções. Dá origem a valores que não têm sentido dizer que foram descobertos, pois foram claramente inventados na relação.

Amar não é somente idealizar o amado, como Freud diz. Amar é criar novo mundo, ou ao menos é em parte isso, como Singer delineia. Caso você ame, não se preocupe com gerar filhos, o próprio amor já gerou os filhos à medida que gera um novo valor no mundo. Sua arte como criador já se fez.

 © 2011 Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo.

(1). Singer, I. Philosophy of Love. Cambridge/Massachussets: The Mit Press. 2009, p. 52.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]