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É chocante o que a psicanalista Vera Iaconelli escreveu? Ela diz que as meninas são educadas para serem cuidadoras, e por isso mesmo entram fácil no diapasão do abuso sexual. Calma, ela não está fazendo da vítima a culpada! Está, corretamente, alertando para uma disposição ética da modernidade. Analisando o caso das mulheres abusadas por João de Deus, ela notou que algumas tiveram um “branco” sobre o evento. Negaram para si mesmas o que o ocorreu. Sentiram desconforto e humilhação, mas, por vários matizes e mistérios da autoproteção, ativaram sua docilidade aprendida e desligaram o fato horroroso de suas memórias um instante após o ocorrido.

A exposição de Iaconelli, ao menos para mim, vai além do sexo. Se tomamos o corpo, que é parte integrante do sexo mas vai além dele, caminhando para o campo mais amplo do erotismo e sensações em geral, podemos extrapolar suas observações para âmbitos sociológicos que retratam a modernidade. Penso que posso dizer que nossos tempos modernos, regrados pelo capitalismo financeirizado e digitalizado, onde a “sociedade disciplinar” (Foucault) cede espaço para a “sociedade do controle” (Deleuze) (1), são uma época em que o abuso se generalizou. Isso é algo que é possível de ser notado a partir desse trecho de Iaconelli:

  • “O paternalismo que visa proteger as mulheres se baseia em subserviência e falta de autonomia delas diante dos seus protetores —e algozes—, que afirmam saber o que é melhor para elas. O modelo “recatada e do lar” passa longe da ideia de assertividade feminina, na qual o sujeito reconhece seu desejo, identifica o suposto desejo do outro, mas não se deixa alienar por ele.” (Folha, 29/09/2020)

Inteligente, Vera não fala em machismo e sim em paternalismo. Sagaz, aponta para uma saída diante do problema, que vale para todos nós: reconhecermos o próprio desejo (ou a falta dele?), o desejo do outro, mas sem a submissão que é uma alienação. Se é assim, todos nós estamos com a mesma tarefa nas mãos, não só as mulheres. Pois a “sociedade do controle” é aquela que se aproveita de nosso distanciamento de nossos corpos para nos colocar em diversos corpos insensíveis, ou seja, em não-corpos. E aí está o mecanismo do abuso em geral. Como isso ocorre?

Cada um de nós é uma pessoa cifrada, disse Deleuze. Ou seja, cada um de nós tem várias senhas (cifras) para adentrar plataformas virtuais e adquirir um  novo corpo lá nesse ambiente. Este corpo é dócil ao extremo, uma vez que nada sente, pois é mágico, rápido e fugaz. É virtual! Anda pelas vias dos algoritmos e obedece a lógica binária e, evidentemente, bem burra. Vai sempre no âmbito do linear, sem olhar dos lados, com conexões mas sem relações. Participar de um fluxograma de algoritmo, que é o que fazemos na navegação na Internet, é o mesmo que jogar o joguinho de dados em que você vai de casinha em casinha, recebendo ordens binárias a cada casa: “pule três casas, e se caiu na casa do lobo, então fique uma vez sem jogar, a não ser que responde tal e tal pergunta”. Lembram desses joguinhos? E em cada caminho esse corpo virtual se comporta como o dinheiro, mas sem a força deste. Servindo ao caminho do algoritmo, favorece, como o dinheiro, só o capital. Pois se você navega na Net, alguma operação de lucro está ocorrendo por conta de sua navegação – e a nova economia é o agora o campo do lucro atual, especialmente na fase-pandemia. O aumento do capital abusador, explorador, alienador, é o único elemento de comando da modernidade. Para Marx este sujeito, o capital, acertadamente, era o “sujeito autômato”. Nesse sentido, cada um de nós, somos abusados como quando uma menina dócil, educada para cuidar, é abusada. Todos nós somos educados para cuidar do crescimento do capital, somos todos explorados. Explorar, nesse caso, serve como sinônimo de abusar.

Não estou fazendo uma analogia. Não estou dizendo que o abusador-homem que pega a mulher educada como menina que serve e é cuidadora é análogo às pessoas – todos nós – que servimos como abusados do capital enquanto cuidamos de seu crescimento – acumulação, dizem os economistas marxistas. Estou dizendo que ambas as coisas são o mesmo processo com facetas específicas. As meninas cuidam de um modo especial, mas todos nós somos educados para cuidar. Cuidar dos chefes. Não pessoas, mas o próprio crescimento do capital. Fazemos isso quando somos convocados para agirmos por nós mesmos, mas docilmente. Tudo que temos que ser é tolerantes. Bons liberais são os tolerantes, já dizia Locke no século XVII. Temos que tolerar tanto que, se não toleramos Hitler ou os desmatadores, temos de escutar a direita nos dizer, tentando ser irônica, que praticamos o “ódio do bem”.

Nossa educação para nos comportarmos e servimos o abusador – João de Deus ou o Capital – é universal. Não há educação para a rebeldia. Quando a direita é rebelde, ela é ainda mais subserviente. Bolsonaro, MBL, Pondé e outros gângsters dizem que é para nos rebelarmos, para não deixar, por exemplo, que regras estatais nos dominem. Querem nosso corpo rebelde diante da agulha da vacina, mas isso apenas para que nosso corpo, obedecendo ainda mais ao biopoder, fique subserviente da covid ou melhor dizendo, da fusão entre o vírus e o Bolsonaro, o que chamei em artigo na Folha de Bolsovírus. Toda direita hormonal (como a denominei em meu livro A filosofia explica Bolsonaro, Editora Leya, 2019) prega a rebeldia corporal para que nossos corpos possam estar ainda mais servindo ao cuidado, uma vez que iremos cuidar para que a milícia e a Igreja Evangélica possam ser os novos abusadores.

Se somos assexuados ou, de modo mais amplo, deserotizados, nosso corpo fica ainda mais vulnerável ao abusador. Somos abusados e na hora do abuso nenhum sino corporal toca nos avisando que se trata de abuso sexual. Sentimos desconforto. Mas não tanto quanto aquela mulher que vê seu local de amor devassado pela penetração do órgão do abusador. Os simbolismos aqui são diferentes. Quanto menos sensibilidade própria, mais propensão a se queimar no fogo alheio. Também assim funciona nossas queimaduras quando à exploração. Quanto menos corporalizados estamos, mais caímos nos apps e seguimos o caminho de um script pobre, montado pelo fluxograma dos algoritmos. Dessexualização que facilita o abuso, ao negá-lo, tem a sua contrapartida na descorporalização de quem é abusado pelo algoritmo, que lhe tolhe a vontade e o faz alguém incapaz de lhe dizer “não!” ou mesmo denunciá-lo por qualquer coerção ou alienação imposta.

Nesse sentido, a dessexualização atual da juventude é fruto e semente dos processos do “sujeito autômato”, que se aproveita da nossa descorporalização geral. O homem cifrado de Deleuze, o homem das senhas, pode ser identificado por marcas corporais: cor, sangue, cintura, iris, DNA etc. Agambem lembra disso, do corpo nu como elemento de identificação, do afastamento da ética nesse caso. (2) Mas o corpo nu de Agamben não identifica, ele apenas carimba o indivíduo. A identificação mesma é a descorporalizada senha com a qual viramos gente, ao podermos estar em nossos apps como usuários ou trabalhadores, o que é a mesma coisa hoje em dia. Perdemos o corpo para sermos abusados em um grau superior ao que João de Deus conseguiu fazer.

© Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. 29/09/2020.

(1) Para compreender o texto o leitor deve ter claro essa distinção, elaborada no texto de Deleuze: Post-scriptum sobre a sociedade do controle. Leia aqui [PDF].

(2) Vale a pena aqui uma leitura atenta de Identidade sem pessoa, de Agamben. Leia aqui [RTF]

Adendo: para entender Agamben leia: Ensaios sobre Agamben e outros escritos (CEFA Editorial)

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