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Publicado na Folha de São Paulo 3 de outubro de 2016

A direita reclama do Fisco, mas, uma vez no governo, nunca tem outra ideia que não a de aumentá-lo ou introduzir um imposto a mais aqui e ali. Por sua vez, a esquerda é obcecada pela ideia de ampliá-lo para as camadas mais ricas, como se dinheiro na mão do Estado garantisse alguma equalização social.

Nietzsche disse que Deus morreu, ou seja, que o absoluto metafísico não era mais do interesse de gente séria. Mas não se deu conta de que a divindade intocável da modernidade nada é senão o Fisco.

Todas as propostas sobre tudo que se pode mudar na Terra não tocam no imposto. Ou se arranca do homem à força algum dinheiro que deve ir para o Estado ou não se tem sociedade. Eis o dogma de uma religião com legitimidade de pés de barro.

Na quarta (5), pelo projeto Fronteiras do Pensamento, o Brasil vai receber o único filósofo contemporâneo que tem a coragem de fustigar esse dogma, sem vínculo com qualquer tipo de conservadorismo.

O filósofo alemão Peter Sloterdijk defende uma mudança de mentalidade que possa gerar uma “sociedade generosa”, aquela na qual o Estado social-democrata que adora taxar possa até estar presente, mas sem dar as cartas para o clima social em geral, que funcionaria pela ênfase na doação e no patrocínio, em um mecenato de cuidado.

Sloterdijk está longe de defender qualquer tipo de “privatização” ou “socialismo feito por capitalistas e doadores”. Sua proposta básica é olharmos para o que já fazemos em termos de trabalho voluntário, doação de dinheiro, tempo e criatividade em inúmeros projetos louváveis, o que não é pouco no mundo, e caminharmos no sentido de incentivar tal atividade e ampliá-la.

Esse tipo de coisa criaria o que ele chama de “dinheiro inteligente”, o oposto do Fisco que, sabemos, arrecada e joga para políticos a tarefa de antes desperdiçar que empregar dinheiro naquilo que queremos.

O filósofo nos conta que a Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, fez um cálculo mostrando que, em 2008, os americanos gastaram US$ 307,7 bilhões em caridade, dentro de suas obrigações fiscais. Só uma pequena parte disso era obrigação restituível.

Esse dinheiro “endereçado”, diz ele, é aquele que vai para a vida cultural e social que realmente se deseja. Uma sociedade assim pode equacionar melhor um grave problema atual, o da distância entre a população e a política.

Sloterdijk não diz tudo isso como uma ideia tirada da cartola. Ao contrário, ele tem revolucionado a descrição de nós mesmos a partir de sua antropologia e psicologia.

O desenho do homem feito pela psicologia moderna nos reduz a uma disputa entre razão e paixão. A fúria por reconhecimento e nosso ímpeto na busca de identidade orgulhosa no que criamos fica sem lugar na alma humana moderna.

Sloterdijk propõe um desenho do homem a partir da psicologia antiga. É necessário um lugar positivo para um terceiro componente da alma, o thymos, o lugar da autoestima, da dignidade e do reconhecimento. Forças eróticas querem as coisas para suprir carências. Forças timóticas não querem pegar as coisas para acalmar desejos, pois são antes de tudo forças doadoras e, portanto, realizadoras.

Uma sociedade como a nossa pode recuperar as forças timóticas em detrimento das eróticas e gerar um grande incentivo a uma vida generosa.