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Publicado na Folha de São Paulo 8 de setembro de 2017

Criamos no Brasil a cultura do autodidatismo que, na verdade, é tudo menos cultura.

As pessoas imaginam que todo e qualquer saber é aprendido por meio de um encanto próprio pessoal, uma magia, e que qualquer um pode abrir livros e aprender qualquer coisa, principalmente “o que interessa”.

O que não se nota: 1) há saberes que são essencialmente grupais e especiais, nascidos em confraria, como a filosofia e a medicina; 2) nem tudo que nos interessa é o que deve nos interessar para sabermos o que devemos saber ou mesmo queremos saber.

1) A filosofia e a medicina, por exemplo, não podem se aprendidas por meio do livro e do cadáver (ou doente) somente. Elas são saberes que, antes de tudo, precisam do terceiro elemento, o professor ou o mestre ou o parceiro de atividades, e um campo propício, ou seja, a boa biblioteca e bom hospital. O próprio saber é, nesse caso, essencialmente coletivo em um sentido especial.

2) No caso de aprender “o que nos interessa”, em geral cometemos erros gravíssimos, pois o que nos interessa não é, em geral, o que precisamos saber para exercer uma prática que nos interessa. É necessário já um certo saber, uma certa experiência prévia, para de fato discernir saberes e entender o que é interessante e o que não é interessante.

Esses dois casos se referem a dois pontos centrais de uma conversa sobre educação que está posta na nossa sociedade atual.

Primeiro: a cotas na USP para egressos da escola pública média. Segundo: a reforma do ensino médio em que o aluno escolhe sua área de conhecimento precocemente. Eis aí dois erros crassos.

No primeiro caso, parte-se do pressuposto de que é possível aprender em qualquer lugar, que se a USP virar uma escolinha qualquer, sem a confraria de professores qualificados, ainda assim o aluno, estando respirando o ar do Butantã, aprenderá.

Ele vai se esforçar sozinho e, sabendo-se ser aluno da USP, ganhará orgulho misterioso e estudará sozinho.

No segundo caso, parte-se da ideia de que o estudante de 15 anos sabe o que é “área de conhecimento” e que já pode se especializar numa, sem ganhar, em três anos, o saber geral e básico que sempre cultivamos no Ocidente.

Essa segunda medida, que enfraquecerá o aluno ainda mais, principalmente o da escola pública de nível médio, alimentará o deterioração do ensino na USP, exatamente porque esse alunado, sem saber o necessário, virá para o ensino superior público pelas cotas (cotas étnicas são outra coisa, e deveriam sim ser instaladas, mas por meio de ampliação de vagas, não pelo meio de divisão do que já existe).

Esses defeitos estão ocorrendo exatamente porque no Brasil a ideia que se propaga por aí é que “não existe uma pessoa sem conhecimento, o que existe são pessoas com saberes diferentes”. Esse lema é uma grande bobagem.

Antes da cota para a escola pública, o melhor seria fazê-la não diminuir suas disciplinas, mas ter professores bem pagos para oferecer mais conhecimento, até mais disciplinas.

Bem antes da cota para a escola pública, a universidade deveria oferecer cursinhos populares com bolsa de manutenção, para alunos pobres se dedicarem ao estudo referente ao vestibular, e isso especialmente na USP.

O Estado de São Paulo, o mais rico da federação, poderia sim bancar esse sistema de bolsas.