Skip to content

[vc_row][vc_column][vc_column_text]

Em um pequeno livro com o título Temperamentos filosóficos, Peter Sloterdijk qualifica Marx como o filósofo “exorcista do trabalho morto”. Ele diz: “o núcleo da sua crítica da economia política é a necromancia: como herói que emerge do reino dos mortos a fim de lutar com sombras de valores, Marx permanece atual para o presente de modo inquietante”. A atualidade de Marx depende de quanto estamos dispostos a acreditar em fantasmas.

O que significa tudo isso? O que Peter Sloterdijk quis dizer com uma tal qualificação? No texto que segue exponho o trabalho de Marx como aquele que lida com a necromancia

Segundo Marx, a mercadoria tem valor de uso e valor de troca. O valor de uso corresponde à sua utilidade, que se faz vigente na nossa interação com ela enquanto produto adquirido. O valor de troca é o seu valor no mercado, o que a faz autenticamente mercadoria. Na situação de mercado, ela é comprada para ver realizado seu valor de uso. Só conseguirá uma tal façanha por meio de seu valor de troca, ou seja, participando do mercado para cair nas mãos do usuário ou consumidor. Mas há ainda um terceiro termo nos textos de Marx: o valor. Trata-se aqui da condição da troca, o que permite a troca de coisas heterogêneas. O valor, como está definido em O capital, é o “tempo de trabalho socialmente necessário”. Sem essa noção relacional, e portanto não material mas bem objetiva, não é possível o mercado, ou seja, as trocas.

A mercadoria se faz mensurável, então trocável por meio de um critério objetivo: nela há trabalho humano social contido, o trabalho que é necessário para produzi-la em um tempo médio segundo um patamar histórico e geográfico de desenvolvimento. O valor, portanto, como já disse, é algo relacional. A mercadoria é sensível, enquanto objeto que tem valor de uso, mas é não-sensível ao mesmo tempo, como portadora de valor. Essa sua característica “metafísica”, diz Marx, a faz misteriosa, e de fato ela leva os homens a se relacionarem por meio dela, de um modo invertido. Pois ela, no mercado, é que estabelece sua característica “sensível e suprassensível” e se põe diante de outras mercadorias, como uma peça que tem algo de vivo. O que ela contém é trabalho humano abstrato, mas isso se mostra, no seu lado sensível, como sendo uma sua propriedade natural. Ela ganha algo de espiritual que se apresenta como se fosse algo natural dela mesma, e, então, se mostra útil aos homens, mas com um poder mistificador imenso. Ela se fetichiza. No limite, a mercadoria, nesse sentido, se faz sujeito, pondo o homem como o objeto. Eis aí o “fetiche da mercadoria”. A fetichização é devido ao valor, que encarna o humano, e que se expressa por meio de um equivalente universal, o dinheiro, posto no padrão ouro.

Não é à toa que Marx tenha teorizado sobre isso na era vitoriana – uma época de sucesso dos contos de fantasmas.

Em uma carta de 1922 a uma fidalga incógnita, o poeta Rainer Maria Rilke registrou o seu tempo: “tudo o que se está isolado na claridade dos pavilhões ostenta agora um preço”. “Cada coisa”, continua ele, “nos grita como é jovem e importante e tão concupiscente como aquilo que, barato, faz de objeto de luxo”. O mesmo poeta, em carta a Witold von Hulewicz, acrescenta: “para os pais de nossos pais uma casa, uma fonte, uma torre desconhecida, até mesmo seu próprio vestido, seu manto, ainda eram infinitamente mais, infinitamente mais familiares. (…) Agora chegam da América coisas vazias e indiferentes, aparência de coisas, simulacros de vida…”. E emenda: “As coisas animadas, vividas, admitidas em nossa confiança, vão declinando e já não podem ser substituídas. Talvez sejamos nós os últimos que ainda tenhamos conhecido tais coisas…”.

Essas observações mostram que Rilke soube captar as duas grandes tendências marcantes do mundo moderno. A primeira: as mercadorias gritam e nos chamam. A segunda: elas não têm a ver com a nossa experiência; elas são réplicas, cópias, simulacros – mas simulacros de vida. Nos dois casos, o caráter fantasmagórico dos produtos gerados sob o capitalismo se faz evidente para o poeta. Cerca de oitenta anos antes, Marx havia tocado nesse assunto, alertando para o “fetiche da mercadoria” e para o caráter fetichizado de todo o mundo sob o capitalismo.

Anterior a Marx, Adam Smith notou a fetichização. Por ocasião de um discurso em homenagem ao primeiro ministro Lord North, em 1778, ele descreve como que os alfinetes percorriam organizadamente um longo caminho, indo do campo de extração do minério para passar pelas fábricas e lojas até chegar aos ateliês de costura. Então, comenta o fato segundo uma imagem que lhe vem à cabeça: “Num capricho poético, poderíamos ceder à crendice e aceitar a ideia delirante de que, num mundo superior que participasse no nosso, existiria um povo espiritual de alfinetes que, quais demônios benfazejos, acompanham os alfinetes terrestres em sua metamorfose”. Adam Smith usa dessa imagem, ainda nesse discurso, para lançar a sua ideia célebre, a da mão invisível do mercado. Todavia, se esse trecho foi lido por Marx, este deve ter pensando antes de tudo no que ele próprio entendia como sendo o caráter espectral da mercadoria. Para qualquer leitor de Marx, hoje, não há como não ver Smith falando como quem descreve o aspecto de fetiche dos alfinetes.

Se os objetos, uma vez mercadorias, nos chamam, e se apresentam como vidas em simulacros, e se parece que possuem um daimon, então não podem ser outra coisa senão aparições, assombrações, ou seja: fantasmas. Quando o século XIX se apresentou para Marx, ele o fez como um reino mal-assombrado, o lugar de mortos vivos.

Em um livro com o significativo e apropriado título Os espectros de Marx, Jacques Derrida deu importância aos escritos de Marx exatamente por sua compreensão a respeito das assombrações. Comentando a parte de O capital que fala do “fetiche da mercadoria e seu segredo”, o filósofo argelino lembra do tratamento de Marx quanto à mercadoria. Esta é, então, o “sensível suprassensível”. Derrida se apega ao exemplo de Marx, o da mesa que firma suas patas e eleva sua cabeça de madeira, e que se põe a dançar. Isso é, para Derrida, uma “aparição”, uma assombração. Todavia, essa assombração não é ideologia na cabeça dos homens, mas efetivamente o que se faz presente na realidade, na prática social dos homens. A ideologia, para Marx, é a manifestação do fetiche da mercadoria enquanto o que se faz na realidade, como o que se põe de modo espectral. Para Marx, assombrações existem, e são deste mundo, o mundo da produção capitalista e da chamada sociedade de mercado. O núcleo espectral da mercadoria é o seu valor.

Em uma nota de rodapé ao seu Espectros de Marx, Derrida solicita estudos investigativos a respeito do que seria uma ‘vaga’ que, na falta de outro nome, poderia ser chamada de ‘mediúnica’. Ora, não precisamos ir longe. Os historiadores da literatura nos informam que o período vitoriano (1818-1901) corresponde à ampliação de contos sobre fantasmas. Eles mesmos, esses historiadores, tentam explicar essa situação. Lançam mão de elementos dispersos. Uns falam de como esses anos trouxeram levas de pessoas do campo para a cidade, gerando uma classe média que veio a morar em casas com serviçais que podiam aparecer aqui e ali no meio da noite – expondo os novos habitantes a situações a que eles não estavam acostumados. Outros acrescentam o aparecimento da iluminação feita na base de gases que, sabe-se bem, tinham lá seus efeitos alucinógenos. Há ainda os que lembram que nesse período surgiu a comunicação a distância, que deu margem a todo tipo de imaginação aos interessados em “espíritos”. De fato, foram os vitorianos que inventaram costume de dizer que haviam recebido mensagens do mundo dos mortos por meio de Código Morse. Também é dessa época o surgimento da fotografia e, com ela, os chamados “fotógrafos de espírito”, que usavam as chapas já queimadas antes, boas para se obter resíduos de tom espectral por detrás de imagens.

Aliás, diga-se de passagem, a morbidez foi uma característica marcante dos tempos vitorianos. Tirar fotos de mortos e expô-las pela casa tornou-se algo comum – uma prática iniciada pela própria Rainha Vitória, e que conquistou a Europa da época. A amostragem de pessoas com defeitos físicos em praças e circos atraia muita gente. Jornais capazes de entreter o público com notícias novelescas de crimes bárbaros também se tornaram corriqueiros. Especialmente se os crimes pudessem se repetir. O cenário de uma Londres sob neblina e fuligem da revolução industrial revelou-se um clássico da iconografia da urbanidade vitoriana. Jack o Estripador fez fama. Em 1888 ele aterrorizou a periferia londrina, e desde então reinou como um ícone da vida sob neblina, ou melhor, da morte.

Sabemos o quanto os fantasmas se adaptaram bem às novas tecnologias. Eles logo passaram a preferir a comunicação via objetos tecnológicos, quase que duplicando a fetichização. No conto de Carlos Drummond “Flor, moça, telefone”, nosso poeta fez questão de mostrar como ele sabia percorrer esse paradigma vitoriano tardio. Nele, é por telefone que o suposto morto se comunica com a moça que roubou uma flor de seu túmulo. O filme O chamado (The Ring, Gore Verbinski, 2002) não fez sucesso à toa. E uma série bem vista é Walking Dead. Isso sem contar que Frankenstein (1818), de Mary Shelley, ainda se presta a todo tipo de interpretação a respeito das fronteiras entre o vivo e o morto. Também seguiu esse caminho o Drácula (1897), de Bram Stoker. E por que não colocar nesse rol, ainda que sob um vetor de sentido diverso, o carrinho Herbie, do Se meu fusca falasse (The love bug, Robert Stevenson, 1968)? Pensando bem, uma lista com tais criaturas poderia ter fim?

Mas, em geral, os historiadores da literatura se esquecem de Marx, e não atentam para como que esse período vitoriano foi, de fato, a época que gerou uma das mais criativas narrativas sobre as aparições espectrais. Marx foi o autor que trouxe para o plano da teoria a ideia do fetiche como o grande produto da então recém-inaugurada, em termos grandiosos e industriais, sociedade de mercado.

Como Smith, que viu os alfinetes comandados por daimons, ou como Rilke, que reclamou dos gritos e chamados das coisas, Marx notou o mundo das mercadorias se pondo na condição de quase viventes. O trecho célebre de Marx, relativamente equivalente aos dizeres de Rilke e Smith, com certeza é o da mesa, que está em O capital. Vale a pena repeti-lo aqui, ainda que por demais conhecido:

  • “É evidente que o homem, por sua atividade, altera a forma das matérias naturais de um modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma em uma coisa sensível-suprassensível. Ela não se contenta em manter os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo em relação a todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria”.

Cada mercadoria é trocada por dinheiro e, uma vez nas mãos do consumidor, volta a ter valor de uso, mas de modo imperativo, agora, pois também nela se insere todo o trabalho humano abstrato das outras mercadorias, que animam o valor de uso e fazem com que os homens imaginem que o que anima cada mercadoria não seja essa parte humana que ela guarda, mas algo que é da própria natureza das mercadorias. A mercadoria é, então, um fetiche: algo material que se move aparentemente por si só, mas que se move mesmo, realmente, por conta de ser a incorporação da atividade humana nela contida.

Assim, para Marx, não há uma representação do mundo que, como representação, vem de uma fonte psicológica, e que inverteria as coisas. Há sim uma inversão real do mundo. As mercadorias de fato se insurgem diante dos homens como o que é criado pelo homem, mas, sem que ele note que tal poder vem de si mesmo, enquanto aquele que empoderou a mercadoria ao lhe fornecer caráter suprassensível humano. Assim, a mercadoria se põe diante dos homens, se fazendo de sujeito, e passa a submetê-los, dando-lhes ordens – tendo ideias, ou seja, “minhocas na cabeça”, com Marx diz em O capital.

Marx chega a usar a ideia da religião para explicar o caso: os homens criam os deuses que, uma vez criados, submetem os homens. Mas essa metáfora não é boa. Pois ela apela para uma inversão mental. A inversão do fetiche da mercadoria, e que se estende ao dinheiro, que é o meio pelo qual o valor se expressa, é uma inversão da própria realidade. O homem realmente fica sob o jugo dos desejos da mercadoria – ela adquire desejos e comando. Ela passa a ser o ser vivo, o sujeito, e o homem é aquele que lhe obedece sentindo sua força material e simbólica, como o que lhe impõe vontades por si e pelo dinheiro.

O dinheiro, assim, não tem força sobre o homem por poder comprar coisas, mas porque ele é a expressão do valor, e este, por sua vez, está incorporado à mercadoria como a substância imaterial que transpassa todas as mercadorias: o trabalho abstrato, a atividade humana abstrata. A mercadoria é objeto, mas o seu valor não é valor de uso somente, é, uma vez como valor de uso, também valor, algo humano que perpassa todas as mercadorias. A força da mercadoria sobre os homens advém da força do valor, objetivo, sobre qualquer indivíduo psicológico.

Sentimos isso se entramos numa loja e vemos que a mercadoria não está sob nosso comando, mas ela nos comanda por conta de seu caráter de fetiche: podemos ter dinheiro para levar uma calça comprada na loja, mas ela, antes disso, nos dará ordens, irá nos fazer nos adaptarmos a ela. Iremos a uma academia ou mesmo nos cortaremos com algum médico para nos ajustarmos à calça. O morto comanda o vivo ou, melhor, a mercadoria é agora o vivo e nós, definitivamente, os mortos. Como ainda andamos, então a melhor imagem para nós é a de zumbis.

Desse modo, o mundo dos homens da sociedade burguesa ou moderna é o mundo dos zumbis. Seres que possuem uma restrição psicológica. Seres de desejos menores, obsessivos. Seres assim são de fato muito propensos a um tipo de narcisismo, capazes mesmo de achar que um copo de água depende, para ter valor, da sede. Zumbis tem uma forte tendência narcísica, acham que tudo gira em torno deles.

© 2020 Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. [texto reescrito a partir de texto de 2019]

Foto: Londres no início do século XX

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]