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A medicina precisa aprender que vivemos em uma era da biopolítica, do biocapitalismo. As pessoas que querem melhorar a vida dos mais pobres deveriam parar de advogar o lema “não se pode politizar a vacina”. Foucault nos deixou uma lição que não temos como desconsiderar: a modernidade é a época em que o poder não se manifesta senão como algo que busca o corpo, e assim faz para produzi-lo. Coronavírus é algo que só gera a covid no momento em que há a cidade, a polis, pois é esta que se organiza de modo que a covid exista e se transforme em pandemia, ou melhor, sindemia. Assim, a covid é uma doença política, e só podia mesmo ser assim, uma vez na sociedade biocapitalista.

Um outro ramo das chamadas até pouco tempo “profissões liberais”, além da medicina, é a arquitetura. Também esta precisa retomar sua trajetória de politização. Em época de biocapitalismo, com o poder visando os corpos em favor do capital, é fundamental que os arquitetos saibam que eles não lidam com desenhos e cimento, mas com corpos – corpos vivos, pessoas!

Um arquiteto que projeta um viaduto ou uma escada sob uma marquise para uma cidade real, e não para a cidade da maquete, não pode deixar de saber que o que faz é, antes de tudo, um teto. Uma cidade capitalista é um lugar de diferenças sociais que levam as pessoas a procurarem qualquer coisa que se interponha entre elas e o relento. Elas buscam um teto. Todos nós estamos sujeitos a buscar um teto a qualquer momento em uma cidade moderna.

Acreditar que é possível fazer um viaduto ou coisa parecida e não notar sua função de teto, é inadmissível. Um viaduto não é feito para carro passar. É um lugar de frente e verso, portanto, sempre é sempre será um teto. Um arquiteto que faz um viaduto em São Paulo e não o vê como teto é tudo, menos arquiteto. Se um arquiteto espera que seu viaduto não venha abrigar ninguém, e que a pobreza não é seu problema enquanto desenhista e projetista, ele deveria pegar um táxi para Plutão. Ou talvez tenha consumido algo que fez com que tal viagem já tenha até se realizado.

“Perdemos tudo, fomos parar embaixo da ponte”. “Amo você e quero viver com você mesmo que seja embaixo da ponte”. Essas expressões são conhecidas. A ponte é teto. Todos sabemos disso. Marquise é teto. Há mais tetos em uma metrópole do que arquiteto despolitizado sabe. Arquiteto despolitizado não é arquiteto.

Um arquiteto que preza pela sua obra não deveria deixá-la ser modificada. Se ele fez um viaduto, fez um teto. Se alguém modifica o viaduto para que ele deixe de ser um teto, o arquiteto inteligente e que respeita sua própria criação precisa reclamar. Desse modo, se gente como Covas, apadrinhado do Dória e que adora tirar foto com Bolsonaro, coloca pedras pontiagudas embaixo de viadutos na cidade de S. Paulo, para que os sem- teto sejam mais sem teto do que já são, o arquiteto responsável pela obra deveria entrar na justiça e reclamar: “alteraram minha obra!” Outros arquitetos, em nome de São Paulo, e da própria compreensão do que é teto numa época de biocapitalismo, deveriam alertar os liberais, os homens e mulheres do PSDB para um fato simples: “Embaixo da ponte” é um lugar.

Pode não ser um lugar para Bia Dória, pois ela declarou em vídeo que devemos parar de alimentar gente que mora na rua, pois eles podem folgar e se acostumar a ficar na rua. De fato, a rua é muito agradável para morar. Caso não tivessem reclamado, ela logo faria outro vídeo dizendo: morar na rua é até saudável em noites de calor. Num terceiro vídeo, aposto que chegaria ao cume: “Vou me mudar para a sua, ali a gente não precisa se responsabilizar por nada!”.

Mesmo que um dia São Paulo tenha um prefeito (depois de Erundina não vi nenhum), e este consiga moradia para todos, ainda assim, eliminar os espaços embaixo de pontes e marquises, para que ninguém se aloje ali, será um crime. Um crime ético-estético. Um crime político. Nesses crimes, se instaura a crueldade da mediocridade.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo.

Veja o vídeo: https://youtu.be/YvQaEqujbPA

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