Publicado na Folha de São Paulo 30 de julho de 2018
Em todo e qualquer país há três tipos de pessoas: os cultos, os ignorantes e os semicultos. A anomia é uma ameaça para aqueles lugares em que os semicultos aumentam de maneira desproporcional.
Quem são os semicultos? São os sabichões. São os que xingam um juiz que condenou ou soltou alguém, sem no entanto entender os detalhes técnicos legais pelos quais o juiz agiu. São as pessoas que, por conta de poderem veicular ideias, acham que sabem mais do que sabem.
Hannah Arendt (1906-1975) chamou-os de filisteus da cultura. Eles barram a explicação douta, escolar, técnica. Como falam pelos cotovelos, conquistam os ignorantes para a adesão à informação errada.
Países como o Brasil, em que a escolarização existe, mas o salário do professor é ruim e a escola pública vai de mal a pior, podem entrar para uma situação de balbúrdia geral sob o império da incompetência diante do texto. Todos os exames internacionais mostram que os brasileiros vão mal em tais provas por não entenderem o enunciado das questões!
Não à toa, há aqui pessoas que, até os anos 80, não imaginávamos que pudessem abrir a boca e serem ouvidas. Mas, agora, falam grosso. Há o indivíduo que escreve na internet que a Terra é plana e que não há combustíveis fósseis; há o outro que é contra as vacinas; há aquele que fala que ter filha, e não filho, é uma desgraça; surge o que diz que cigarro não faz nenhum mal; sai da cova um outro dizendo que homossexualidade é “aberração” e que mulher grávida prejudica o rendimento da indústria.
Enfim, há o palestrante que sabe de tudo, de filosofia e ciência, pois não entende que tais matérias demandam um vocabulário técnico e formação específica.
Para estes, as palavras são todas transitáveis entre elas. Desconhecem o conceito de conceito.
Um país assim demanda, de modo urgente, um novo trabalho no âmbito da comunicação política e da comunicação pública. O governo precisa de técnicos capazes de criar bons discursos para informar —corretamente, claro— a população sobre direitos e deveres básicos.
Os movimentos sociais precisam se reordenar para falar de modo menos ideológico, tanto na conversação entre seus membros quanto com os membros da mídia e do governo. Sem escola, não dá para fazer nada disso. Mas, no momento atual, esperar pela escola é muito arriscado. Não há mais tempo. Algum voluntarismo heroico é necessário.
Pessoas com saberes técnicos precisam começar a agir de modo menos condescendente com o pseudoculto. Guru político tresloucado que fugiu da escola, youtuber abobado, líder religioso vítima de analfabetismo funcional, advogado mal formado, palestrante que vomita frases banais —toda essa gente que trabalha propagando bobagem precisa ser combatida por meio do trabalho de quem tem cultura técnica.
O Brasil possui gente culta, mas que está se omitindo diante da barbárie. Esse pessoal culto ou está desanimado ou simplesmente não dá atenção para o volume que os semicultos estão fazendo. A qualquer momento veremos candidatos à Presidência não escovar mais os dentes ou ter dificuldade em decorar três palavras para falar em público.