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Giorgio Agamben foi criticado de modo rasteiro e pouco culto por Marcelo Coelho, da Folha de S. Paulo. Coelho se insurgiu contra a sua análise aparentemente condescendente com a covid em solo italiano. É que enquanto aqui enfrentávamos e ainda enfrentamos um governo que buscou liberar a população de qualquer cuidado significativo para com a doença, Agamben estava preocupado – e ele não mudou de opinião – com as formas autoritárias que o governo italiano, já no início da pandemia por lá, poderia vir a usar e de fato usou para resolver o problema. Coelho ridicularizou Agamben por ele estar preocupado com isso diante de tão grave ameça.

Pelo que escreveu, Marcelo Coelho não deve ter lido Agamben. Imaginou-o como um marxista dogmático, e sem saber o centro de sua teoria, ousou escrever sobre o filósofo! Isso ocorre nas melhores famílias.

Ao pronunciar-se como fez, Agamben estava levando em consideração sua própria teoria para abordar o assunto. O centro de sua teoria social é o conceito de vida nua, a vida puramente biológica que caracteriza nossa visão de vida na modernidade. A vida biológica ou a mera sobrevivência é exatamente a vida tomada por nós, modernos, que abrimos mão de preceitos éticos jogamos fora as condições de dignidade. Nós modernos queremos estar vivos custe o que custar! O modo como o governo italiano passou a lidar com a doença se fez a partir dessa ideia: sobrevivência. A dignidade humana foi jogada para debaixo do tapete diante dos números. A população foi tratada como pedaço de carne com sopro respiratório, e não como um conjunto de pessoas. A ideia da modernidade como campo de concentração, como está na teoria de Agamben, se instaurou facilmente na Itália. Ele se horrorizou com isso.

Alertei na época sobre tudo isso. Falei que teríamos de ler Agamben olhando para a sua teoria e para a Europa, e que vivíamos aqui, no Brasil, uma situação diferente que carecia de mais cuidados teóricos. Aqui, a dignidade também foi jogada para segundo plano, mas não em nome da vida das pessoas e sim em nome da abstrata vida da nação, que foi denominada aqui, sem escrúpulos, como “realidade econômica”.

Aqui entre nós, portanto, a questão era relativamente outra. Fazia-se necessário entender melhor o conceito de biopoder. O poder se manifesta na modernidade atingindo a vida. Não vemos o poder senão em sua forma fenomênica, e esta se dá no modo como a vida se transforma. A covid tinha de ser vista como a situação em que o poder político, favorecendo o vírus, se punha de modo mais autêntico como biopoder. Jamais poderíamos ter desviado a atenção disso, para que em momento algum caíssemos no erro de naturalizar o coronavírus e a covid. A esquerda institucional deveria ter ficado atenta para tal. Mas descuidou. Por desconhecer o conceito, ou por não conseguir aplicar corretamente o conceito ao que estávamos vivendo e ainda estamos, deixou o discurso médico vencer. A direita favoreceu o discurso médico: a doença é doença, um fato natural, no máximo um fato natural com consequências também sociais. Ora, uma vez que se assumiu que se tratava de uma questão médica, não foi difícil para muitos concluírem que a doença tinha que ser enfrentada com alguma droga. Não havendo a droga, então a população, como era de se esperar, passou a procurar uma saída própria para o problema.

Os médicos caíram no engodo criado por eles mesmos. A direita deitou o rolou. Toda vez que uma doença é naturalizada, e então o médico é chamado, espera-se uma droga. Não havendo uma droga, oferece-se o misticismo. E eis que a cloroquina apareceu e, junto de outras medidas sem efeito ou mesmo prejudiciais, ganhou fácil do discurso mais correto do ponto de vista da ciência. O discurso de precaução, como não poderia deixar de ocorrer, tornou-se  inócuo. Alguns falando de medidas de cuidado, mas sem oferecer dinheiro do estado para que tal coisa pudesse de fato ser efetivada, soaram como fala vazia para a qual a população mais pobre teve de dar de ombros.

A esquerda deveria ter trabalhado com o conceito de biopoder, insistindo que o vírus era de fato um Bolsovírus, algo desde o início completa e unicamente político. A cura era uma cura política. Mas a esquerda institucional não conseguiu pensar assim e também começou a falar que não existia cura! Abriu espaço para a população procurar sua própria solução. O resultado é este: cem mil mortos.

© Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo, 08/08/2020[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]