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Felipe Neto é um personagem interessante. Há centenas ou talvez milhares iguais a ele. Mas ele é o conhecido do momento e, por isso mesmo, interessante. Ele nos interessa como personagem que é. Ele e um personagem de uma trama específica. A geração que o segue e que faz o que ele faz, ou que tenta, é uma geração de transição. Eles, os companheiros de viagem de Felipe, ainda não se virtualizaram definitiva e integralmente. Mas, certamente, o que fazem e como vivem apontam para o que pode ser o homem do amanhã.

No  célebre “Fragmento dos Máquinas”, Marx chama a atenção para o homem que pode vir a ser um coadjuvante das máquinas, e não mais propriamente um trabalhador no sentido tradicional da palavra. Todavia, poderíamos pensar nessa situação de coadjuvante não como alguém exterior à máquina, mas alguém integrado a ela por conta da organização do trabalho e da vida, em que homem e máquina estariam unidos por grandes sistemas de regras. Se tais sistemas implicam ou não em fusão física, hoje em dia isso parece de importância secundária. Podemos ser ciborgs ou, o que dá no mesmo, usuários de smartphones. O local dos algorítimos que nos comandam pouco importa.

Felipe Neto não precisa ser um ciborg para parecer um.  Ele é alguém cujo smarphone é antes de tudo seu principal locus. Sua topografia é construída na Apple ou Sunsung e o software apropriado lhe dá sua verdeira ontologia. Felipe Neto só é Felipe Neto se suas postagens atingem o moleque bolsonarista e olavete que tenta lhe importunar e imitar.

Felipe Neto não tem mais vida carnal, apenas virtual. Ora, apenas?  Isso é muito. Ele não tem mais relações múltiplas, mas respostas uma a uma em sequência linear. Ele pensa em termos lineares. Durante o dia todo ele está na Internet. É um ser sem corpo, assexuado, sem rugas e sem envelhecimento, pois no mundo virtual o tempo exterior não conta. O mundo virtual tem seu próprio tempo. Nessa assexualidade dele, como uma entidade descarnada, ele não possui mais sentimentos, apenas diretrizes de sobrevivência virtual, isto é, seguir regras para não ser cancelado, e colocar seus aríetes virtuais para cancelar o opositor. Mas o opositor nem é um Outro, é apenas ele mesmo. Os seus opositores são cópias, são replicantes! A Internet fornece um espécie de chocadeira de narcisistas.

Felipe Neto se tornou, ele próprio, um algorítimo ou parte de um grande algorítimo. Ele é um estágio de um fluxo grama. A Internet pode se chamar “rede”,  mas cada personagem não atua em rede e, sim, segundo algorítimos. De modo que acreditar que Samatha (do filme americano Her, de Spike Jonze, 2013) se torna uma pessoa mais rica do ponto de vista de múltiplas personalidades é uma ficção muito otimista. Vimos muito bem que o bot chamado Tay, de características adolescentes, criado pela Microsoft para viver nas redes, foi desativado pois se tornou uma nazista – uma pessoa com uma personalidade unidirecional – em poucos meses de vida. A positividade do mundo sem obstáculos, o mundo do Eu sem o Si Mesmo, irreflexivo, anunciado por Byung-Chul Han e responsabilizado pela produção da “sociedade do cansaço”, é algo fácil de ser melhor visto nas redes sociais.

Nada mais falso que falar em “teia de relações” quando vemos o mundo positivo do neoliberalismo em termos ideológicos, ou do mundo do capitalismo financeiro em termos da organização da vida, ou do mundo da internet, que corresponde a esses dois mundos na faceta tecnológica. “Democracia na teia” ou “sociedade na teia” são nomes que pessoas tontas adotam. Gente que não sabe no que está vivendo.

Um algoritmo nada é além daquilo que você pode colocar num fluxograma, de modo a executar uma tarefa a partir de passos que visam chegar a um único resultado. É um procedimento linear. Não é um procedimento relacional. Se você segue um algoritmo você não é capaz de ver teia de relações. Um passo segue outro passo. Você pode mudar de direção, fazer opções entre um lado e outro do fluxograma, mas não pode olhar de lado e ver relações outras senão a cadeia de ordens do fluxograma. É como nos joguinhos de tabuleiro: você começa o jogo e anda duas casas, aí você cai numa casa que manda você voltar duas. E assim por diante. Uma simples continha dessas que você aprende nos primeiros anos é um algoritmo. Um sentença matemática do tipo 3+ 2(2+3) = ? é um algoritmo. Ele manda você seguir passos: você não pode adicionar o 3 com o 2 caso não tenha, antes, feito a operação entre parênteses e multiplicado o resultado pelo 2.

Quem está na ponta de uma algorítimo não consegue ultrapassar sua condição, se responder pela internet, de ser também ele próprio um algorítimo. Crianças educadas na Internet já têm mostrado uma faceta pouco capaz de uma conversa em múltiplas direções e de fato interrelacionada. Quem faz isso são os adultos que cresceram em outro mundo, e que usam a Internet mas foram treinados por outros raciocínios e formas linguísticas.

Mas, por qual razão há uma tendência para, frequentando a Internet no grau que todos estamos, sermos postos como pedaços de algorítimos? Por que não se pode dizer um sonoro “não!” a tal tendência? Duas razões saltam aos olhos. Uma das razões tem a ver com a sociedade da leveza. Outra tem a ver como a retroalimentação entre o modo que o dinheiro se adaptou ao mundo virtual e vice-versa.

A vida fascista é o cultivo da dureza, do realismo, da força e do cansaço – “o trabalho liberta”. Mas essa vida é o contrário do que conseguimos na trajetória humana. Na verdade sempre perseguimos, no nosso caminho evolutivo, a busca da sociedade da leveza, como teorizou Peter Sloterdijk na filosofia e René Lipovetsky na sociologia. A nossa trajetória evolutiva é uma que persegue o mimo constantemente aumentado, ou seja, a ampliação da frivolidade. O mundo atual é menos pesado que o mundo passado. A leveza é condição e telos. E a melhor leveza – ao menos aparente – é obtida quando o corpo pode ser substituído pelas identidades voláteis do homem que é, como Deleuze disse, o homem cifrado – aquele que ganha senhas (cifras) para aderir a uma plataforma, e então ser usuário de um app ou vários. Este usuário pertence ao campo da “sociedade do controle”, que é a sociedade em que somos controlados pela própria publicização de nossa vida na internet. Todo são leves na Internet. Todos são fluxos. Mas todos pagam o preço de pensar pouco, pensar da forma que se comunicam, ou seja, por algorítimos.

A “sociedade disciplinar” que Foucault analisou era a sociedade das instituições que regravam corpos: escola, hospital, igreja, caserna etc.  Uma sociedade foi a vigente no capitalismo fordista ou nas épocas iniciais do pós-fordismo. Éramos corpos e nossa psiquê era aderente ao nosso corpo. O dinheiro tinha lastro no ouro e nós tínhamos referência física no corpo. A âncora para que não voássemos era o corpo, a âncora para o dinheiro era não a confiança mútua dado pelo estado, mas os cofres americanos de ouro que garantiam o dólar. Isso foi antes de Nixon e dos anos setenta.

A “sociedade do controle” vista por Deleuze, já nos anos noventa, diferentemente, é a sociedade do dinheiro sem lastro, que percorre a internet como sinal, como o que ganha zeros e perde zeros, e que está em todo e qualquer lugar segundo as necessidades de velocidade do capital, em especial o capital portador de juros. Nessa sociedade, em que andamos na internet como o dinheiro anda, não temos corpo. Se ainda nos sobra algo como corpo, algo meio que um fantasma, não é ele que é adestrado para se produzir efeitos psíquicos. Os efeitos psíquicos são alcançados pela própria relação com o psíquico. Somos controladores e controlados, mas todos seguindo o mesmo controle do caminho linear imposto pela internet como elemento que estabelece como nos comportamos nela,  que é o modo como os algorítimos se comportam. Ninguém é corporal. Todos somos algorítimos ou partes de fluxogramas. Nossa psiquê é algoritimizada, digamos assim. Nossa alma se vê parte e processo do fluxograma. Somos livres da disciplinas e, no entanto, mais controlados que antes, ainda que, agora, não possamos ver um centro de poder que nos controla. Nem de fato isso existe.

No futuro todos serão seres virtuais, mas sem o sofrimento de Felipe Neto, que é alguém da transição. Seremos talvez, portanto, mais estúpidos. Mas haverá gente fora dessa bolha de não sofrimento físico. Muitos ficarão de fora do Império, e talvez dali possa nascer uma vida frívola que não contenha os que não possuem corpos, os que se coisificaram não por terem corpos, mas por não terem corpos. Fora da Internet, como fizemos várias vezes, inclusive em 2013, pode haver vida. Felipe Neto não pode mais voltar a isso, nem pode ir para o futuro. Daí seu desespero e sua condição trágica.

05/09/2020 Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo.

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