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Você já viu um porquinho morrer? Já olhou nos olhos de um boi um pouco antes dele ser abatido? No primeiro, os gritos são de socorro, no segundo, dá para perceber lágrimas. Os humanos, quando matam outros animais, fazem questão de dizer que não agem assim com outros humanos. Bobagem. Os humanos fazem menos drama para morrer e, portanto, podem ser mortos com muito mais facilidade e menos remorso. Os nazistas ensinaram isso ao mundo. O cultivo da morte é demasiado humano. A morte dos animais pertence aos humanos que ainda não conseguiram se identificar com o legado de Deus: a Terra – ou Gaia.

O homem tonto bate no cachorro. Apesar do cão ser um animal que aprende rápido, ele demora muito para se afastar do seu dono, que ele interpreta como um companheiro, mesmo quando é agredido por ele. Um animal dito “selvagem”, como o leão, reconhece depois de anos quem o criou, e chega a levar tal pessoa para ver a sua família, sua esposa leoa com seus leõezinhos. Esses animais não precisam de uma terrível missão, com a de Jesus, para se disporem a seguir a parábola do Bom Samaritano. Eles reconhecem o diferente como diferente, e são capazes de amá-lo até contra seus instintos tão determinantes. O filósofo Montaigne escreveu vários ensaios sobre a inteligência animal, exatamente para dizer ao homem: sua razão o conduz ao ceticismo, então, por que a põe como elemento superior à inteligência dos outros animais? Montaigne sabia das coisas.

Uma boa parte de nós ama os cães, crescentemente, por que eles nos trazem a utopia de Rousseau do bom selvagem. Eles são melhores que Emílio em estado de natureza. Os filmes de cães nos comovem, pois a utopia de uma sociedade regida por eles supera em muito uma sociedade de pequenos anjos. E eles são, de fato, os únicos que nos provocam aumento de ocitocina. Minha tese é a de que eles estiveram conosco, em vida simbiótica, antes de nós termos nos tornado humanos e eles terem se tornado cães.

Mas, de um modo geral, nossa consciência tem se ampliado diante de todos os animais. Temos levado a sério a Razão Animal. Não somos obrigados a nos mantermos na selvageria.

As pessoas não são obrigadas a serem primitivas como um Karnal que acha que comer uma cenoura (que exemplo heim?!) é igual a comer uma vaca! Ele falou isso e, depois, sempre covarde, pediu desculpas. Mas não mudou. Ora, as pessoas podem ser melhores que isso. Principalmente se vivem num centro urbano! Pois hoje, achar que comer animais é alguma coisa que se reduz a “hábito alimentar”, no contexto da vida gourmet do momento, é atraso: é carência de civilização, civilidade, falta de inteligência, é o endosso do coração empedernido. Fazer como Reinaldo de Azevedo e Pondé nada fizeram é senão a prática de falsários. Eles foram aos jornais falar contra as moças que salvaram os beagles daquele laboratório fajuto de São Roque (SP), em 2013, que não fazia pesquisa alguma e só maltratava animais. Esses três são do tipo que colocam a razão científica em um pedestal de modo torpe. Quando a razão científica mostra sua faceta perversa, eles logo se prontificam para defende-la. Em nome da produção de remédios que não fazem tão bem quanto parecem, e de maquiagens que poderiam ser feitas sem o concurso do sofrimento animal, a razão técnica aparece na boca de crápulas para falar a linguagem da morte. É interessante que a tal razão científica, nesses casos, sempre apareça como o deus dos conservadores! Nietzsche, um eleito do conservadorismo, foi sem dúvida o homem que mais ridicularizou esse tipo de conservadorismo. Nietzsche ousou dizer que a ciência não podia ser livre. Mas ela é livre, por natureza.

Muitas pessoas, hoje em dia, adquiriram um sentimento pelas árvores e uma identidade com os vários bichos. Isso é um ganho moral inestimável. Tão grande quanto o ganho que incluiu entre humanos a mulher, a criança, o pobre, o negro, o aidético, o anão etc. Em parte, devemos isso ao rumo tomado pelo movimento liberal. A democracia liberal é um regime, em certo sentido, hoje, totalitário. Mas, já imaginou viver sem os ganhos dela? Já imaginou viver sem a Doutrina dos Direitos Humanos, dos Direitos Civis, dos respeito às minorias? Seria como viver sem os ganhos do horizonte de perdão posto pelo cristianismo. Seria estar num mundo perverso que abandonamos exatamente porque não quisemos mais ser perversos.

Vivemos hoje, é certo, em uma sociedade em que muitos passam pela automutilação caseira. As pessoas estão amortecidas e, então, se punem. Querem voltar a sentir dor. O problema apresentado pela médica na série Sob Pressão (Globo), que se corta, não é incomum no mundo de hoje. Numa sociedade desonerada, onde o sofrimento precisa ser eliminado, e de fato é, é claro que devem surgir os que se auto-oneram. Todavia, essa é uma transição que teríamos de passar. Não vamos, por conta da Marjorie Estiano, que faz o papel da médica da série indicada, querer voltar aos lutos dolorosos ou às crucificações. Ou seja, não é por conta de termos um geração de gente mole nas escolas que vamos reintroduzir a palmatória. Precisamos entender a desoneração como fenômeno do mimo inerente e crescente que faz parte de nossa condição humana, que é algo que Peter Sloterdijk tem nos ensinado em seus últimos livros.

Não sentir dor e não infringir dor é uma regra dos princípios da maior parte dos liberais, em especial se o liberalismo é tomado como de origem americana. Civilização e liberalismo americano, de certo modo, confluem em ideais.

Não matar os animais está dentro do projeto que Marx chamou de “missão civilizadora do Capital”. O capitalismo se associou (mais ou menos) bem à democracia liberal e mais ainda à nossa condição própria que requer o mimo, o plus, a vida com o “mais” – inclusive com a mais-valia, claro. Mais-valia faz parte do “mais” e da sociedade de abundância (Galbraith) em que vivemos. Mais tudo, mas não mais dor. O que queremos é menos dor. Essa é nossa regra atual. Em menos de duzentos anos deixaremos de matar animais e comê-los. Em menos de cinquenta anos não haverá mais gente no Brasil matando gay, travesti e trans. Haverá mais gente se cortando? Talvez. Mas o fim da dor é um vetor inexorável. Fabricaremos dores suportáveis e administráveis. A sociedade da eutanásia assistida.

O projeto de não ter mais que sentir dor, nem mesmo as dores psicológicas que substituíram as dores físicas – como bem notou Foucault – irá se manter. É difícil imaginar um retrocesso nisso. Mas, sabemos bem, há uma contradição nesse processo. Pois se virtualizarmos tudo, na busca da perda da dor através de uma ausência de relações corporais, talvez nos tornemos não mais sensíveis, mas bem menos. Há perigo aí! Quem desconhece que há perigo? Mas querer impedir o vetor inicialmente liberal que propõe a suavização é, não raro, fazer a apologia do fascismo. Mussolini definiu o fascismo como a sociedade da vida dura.  Mas até mesmo Hitler sabia o quanto a sua doutrina poderia levar a Alemanha a um ritmo mais duro que aquele que ele necessitava, e então proibiu a caça aos animais selvagens, que os alemães tanto gostavam. Nisso, e talvez em outras coisas, até Hitler foi melhor que os falsos liberais do tipo Karnal, Azevedo e Pondé.

©Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. São Paulo, junho de 2020, a partir de uma versão de 2017.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]