Publicado originalmente no Portal IG dia 06/10/2013
Quando perdemos a esperança completamente, em nós e no mundo, aí sim entramos no Grande Desespero. Os judeus não nos deram antídoto eficaz, os gregos sim
A narrativa bíblica mostra nossa origem e desenvolvimento assentada em três potências: narcisismo, inveja e vingança. Olhando assim, é como se a Bíblia estivesse nos dizendo: como é que vocês queriam que desse certo?
Narcisismo. Deus faz o primeiro homem do barro, assopra nas suas narinas dando-lhe vida e o constitui à sua imagem e semelhança. Deus tinha de olhar para si mesmo para fazer o homem? Já não havia criado pedras, plantas e animais de modo tão perfeito? Não! O narciso inveterado determinou: que este aí, argiloso, seja como eu!
Inveja. Pior do que copiar a si mesmo se achando o máximo é ter um inimigo que é o antinarciso! O desgraçado do Lúcifer queria ser Deus. Para tal mobilizou Eva! O que se passa na cabeça de um indivíduo que quer ter os poderes – o conhecimento – daquele solitário e narcísico ser? Que inveja idiota!
Vingança. Deus preferiu como oferenda o filho de Abel e deixou de lado o fruto do trabalho, a colheita de Caim. Caim sentiu inveja e vingou-se matando Abel. Claro que posso entender que Deus, aí, está nos dizendo que ele é antes de tudo um jogador de dados, ou seja, que o nosso destino é um elemento de sorte e azar e que pode, por isso mesmo, não dar a mínima para os que, pelo esforço feito, se acham merecedores de prêmios.
Assim, os judeus antigos deixaram para nós, no Ocidente, essa narrativa de origem. Não adianta querer procurar a tal “esperança” aí não. Ela existe por meio de narrativa antiga também, mas vinda de outro povo: os gregos. Ela é o que ficou no fundinho da Caixa de Pandora. A mulher deixou escapar dessa caixa todo tipo de desgraça, mas ao final, lá no fundo do recipiente, havia o que teria de fazer os homens suportarem os males soltos, a esperança.
Assim, se fôssemos só pela via dos judeus e não tivéssemos adotado também o elemento grego de esperança, o filósofo romeno Cioran não poderia ter escrito que é interessante notar que “em um mundo que nada se resolve (…) não houve e nem haverá ninguém que se suicide por causa disso”. (1)
Cioran disse isso para desqualificar nossa preocupação real com o mundo e mostrar que só o que nos aflige existencialmente, particularmente, nos coloca no reino do real desespero. Todavia, essa dicotomia entre a vida do mundo e a vida de cada um é uma casca de banana. Cioran escorregou nela, por má sociologia. Walter Benjamin ainda não havia sido apanhado pelos nazistas quando se matou. Nunca saberemos se nos últimos momentos ele pensou apenas em escapar do que seria pior que a morte ou se ele se matou porque o que era pior que a morte não era a sua degradação física e moral sob as botas da SS, mas saber que o mundo estava caminhando para cair todo ele sob as botas da SS – e isso, com a vitória ou não do nazismo, em uma guerra que estava apenas começando.
O desespero do mundo pode muito bem ser o nosso desespero não só porque estamos no mundo, mas porque não conseguimos ignorar o mundo. Quando perdemos a esperança completamente, em nós e no mundo, aí sim entramos no Grande Desespero. Os judeus não nos deram nenhum antídoto eficaz para tal, os gregos sim. Os judeus tiveram de engolir Jesus e ver a esperança entrar de modo abrupto no mundo. Não é que no mundo judeu a esperança fosse completamente inexistente (havia a ideia da vinda do Messias), todavia, temos sempre de lembrar, nunca qualquer otimismo poderia ser algo assim tão facilmente (!) disponível às nossas mãos, como parecia a eles o que Jesus prometia.
Conduzimos as nossas vidas, às vezes sem prestar atenção ou mesmo com desconhecimento sobre isso que chamamos de sentimento, segundo essas concepções que se fixaram na mentalidade ocidental. Somos gregos quando temos uma esperança “inata”. Nesse caso, não sabemos por qual razão estamos ainda motivados (para além da serotonina em nível correto), mas o certo é que estamos, temos uma crença de que as coisas devem dar certo. Mas não é uma crença fundamentada. No máximo, ela é racionalizada por uma teoria ad hoc.
Agora, se a esperança aparece em nós porque acreditamos que o final de nossa história é feliz, se temos uma justificativa para dizer que alcançaremos o que queremos porque somos bons e então merecedores – nesta ou noutra vida – então nossa esperança não é grega, é cristã. Não precisamos ser cristãos e nem mesmo saber da existência de Jesus para sermos assim. Somos assim porque a mentalidade do Ocidente adquiriu essa “moral da história” marcadamente cristã. Mas uma boa parte de nós sabe bem de que lugar vem a sua esperança, que o cristianismo é de certa forma conhecido e identificado com o que nos dá uma versão da esperança – a fé.
A mentalidade antiga grega nos faz esperançosos por “índole” e “instinto”. A mentalidade cristã nos faz esperançosos por moralidade, por “merecimento”. Isso traz uma enorme diferença entre pessoas esperançosas. Às vezes temos que admitir que a esperança cristã é incômoda, que sob o prêmio da humildade há a ideia “nós somos os melhores”, os “merecedores”, e isso estraga tudo.
1. Cioran, E. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2012.
Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ