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Publicado na Folha de São Paulo dia 4 de fevereiro de 2021

Wuhan produziu a Covid-19. Outras cidades a reproduziram. Trata-se de uma doença política, ou seja, um mal oriundo da organização da polis. Cidades organizadas de uma outra maneira não seriam vítimas de sindemias como a do novo coronavírus. Cidades organizadas de outra maneira não iriam jogar os pobres, os mais velhos e os pretos para serem as principais vítimas. Mas o projeto capitalista de urbanização, voltado para o lucro e não para o bem-estar das pessoas, nem mesmo dos ricos, é algo que nos parece incontrolável.

Quando a enfermidade ainda não havia chegado ao Brasil, falei no canal que dirijo no YouTube (youtube.com/tvfilosofia) que ela era política. Depois, escrevi nesta Folha (“O grande ataque do bolsovírus”; 21.jun.20) que Jair Bolsonaro havia se fundido com o coronavírus, tornando-se o bolsovírus, e potencializando assim o caráter biopolítico da moléstia que nos infelicitava e que se mantém entre nós, ceifando vidas.

Penitencio-me por não ter conseguido fazer-me entender. As pessoas, mesmo as de esquerda, não compreenderam o caráter biopolítico do problema. No máximo falaram que a doença tinha “aspectos sociais e políticos”, mas não foram além disso.

Não conseguiram ver que a Covid-19 é inteira política. Não entendendo isso, a ideia de naturalização do mal permaneceu. Pensando assim, a ideia de que se tratava de uma fatalidade da natureza ou praga dos deuses vingou entre nós. O bolsovírus na Presidência teve, então, facilidade em fazer valer a sua narrativa. Ele foi perdoado por muitos brasileiros quando disse: “Lamentamos as mortes, a vida continua”.

Diante de fatalidades naturais, de fato é assim que agimos. Pois às quatro da manhã o despertador toca e temos de pular da cama para ir para a labuta. Ninguém irá por nós.

O correto teria sido reformular rapidamente as moradias dos mais pobres, ampliando espaços e criando novos locais de habitação para que a distância social pudesse ser efetiva. Tínhamos de ter ampliado o auxílio emergencial. Tínhamos de ter forçado o lockdown mais rigoroso. Mas com todos imaginando a doença como natural, como fatalidade, tudo isso ficou impensável. Assim veio a ordem de cima: que os médicos se virassem com algo que é doença, e que se esperasse a vacina vinda do destino da especulação financeira —o que, enfim, tudo resolve, segundo os liberais.

Outras doenças semelhantes virão. Cometeremos os mesmos erros e, como desta vez, ficaremos esperando a vacina. Esperar a vacina é também naturalizar a doença. É não entender nada do que aconteceu e está acontecendo. Não pudemos captar o conceito de biopolítica e não estamos nem um pouco interessados em chamar arquitetos para conversar com líderes de bairros e favelas e com médicos sanitaristas para as medidas biopolíticas contra um mal biopolítico. Portanto, ainda vamos sofrer muito. E do mesmo modo vamos padecer na próxima sindemia.

Mesmo com tantos leitores de Foucault, Agamben, Negri e outros na academia, sempre lidando com o conceito de biopolítica, não estivemos dispostos a torná-lo operacionalizável para a compreensão da Covid-19. Talvez seja este o melhor exemplo do que Anísio Teixeira chamava de “ter um conhecimento bacharelesco” —algo que serve para dissertações, mas nunca para a engenharia social efetiva.