Publicado na Folha de São Paulo dia 4 de junho de 2013
Em busca por espaço no mercado de trabalho, ser diplomado pode fazer a diferença entre ganhar ou perder uma vaga de emprego. Para o filósofo Paulo Ghiraldelli, isso reflete mais a necessidade do título do que a procura por educação ou formação.
“Nossa sociedade atual, principalmente os homens, está convencida que há um meio de viver melhor sem precisar passar por escola ou boa escola”, disse.
A estabilidade econômica e a mobilidade social proporcionaram ao brasileiro a possibilidade de experimentar, tardiamente, o consumo e o consumismo, investir na formação profissional e debater direitos individuais e de minorias.
“Estamos vivendo isso de modo muito rápido”, contou. “O que outras nações viveram em 200 anos, temos nos atropelado para fazer em menos de 40”.
Voltado para educadores em sentido amplo, “Filosofia Política para Educadores: Democracia e Direitos de Minorias”, novo livro de Ghiraldelli, apresenta o debate sobre homofobia, violência doméstica, politicamente correto, sistema de cotas e ateísmo.
O autor, em entrevista à Livraria da Folha, falou da relação da direita e da esquerda com os direitos humanos e de outros temas que aborda no lançamento.
Livraria – No início do livro, você apresenta paradoxos da esquerda e da direita em relação aos direitos humanos. Liberdade e igualdade podem ser conciliadas?
Paulo Ghiraldelli Jr. – Uma plataforma social democrata associada a uma base liberal pode equacionar o problema da igualdade sem que se tire liberdade. Sobre esse campo, podemos colocar mais um nível, a plataforma comunitarista temperada pela doutrina liberal do direito. Então, o processo se chega ao seu ponto ideal, pois aí iremos equacionar liberdades e igualdades em um plano superior e mais sofisticado que aquele exclusivamente econômico. Estamos vivendo isso de modo muito rápido. O que outras nações viveram em 200 anos, temos nos atropelado para fazer em menos de 40 anos.
Há pouco tempo discutíamos se iríamos conseguir fazer os mais pobres poderem, por meio da escola pública e gratuita, ter uma vida mais próxima da vida da classe média. Hoje, tendo isso sido conseguido ou não, tendo a escola pública desempenhado um papel nisso tudo ou não, a verdade é que esse debate já comporta um outro que se entrelaça nele. Trata-se das questões que visam afinar nossa “esfera de discussão racional pública”, de modo a encaminharmos o que é da ordem da justiça, para o estado, e o que é da ordem do bem, para outro. Além disso, temos de encontrar os lugares institucionais de encontro dessas duas ordens. Tenho dito que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados é um dos lugares desse encontro.
A chamada “ascensão da classe média” faz com que famílias busquem escolas que prometem preparar o aluno para Enem e vestibulares. Nesse ponto, a consciência dos direitos individuais seriam consequentemente atingidos?
Não creio que isso seja automático, que exista de um lado a “ascensão da classe média” e, de outro, a busca de escola. Esses elementos ligados, assim, são contingências históricas, não dá para vê-los em todo tipo de situação. Essa ligação se deu no passado, sim, mas não necessariamente precisa se repetir. Aliás, no momento atual, o fato de termos mais gente no mercado, o que alguns chamam de “nova classe média”, não tem se revelado como um elemento de busca de escola de qualidade. Há alguma busca de escola, claro, mas mais pelo diploma que pelo ensino, mais pelo título do que pela educação ou formação. Aliás, estamos vivendo uma fase no Brasil em que a importância do ensino propriamente dito e do professor está em baixa. Governo nenhum tem prestigiado a carreira do professor porque a nossa sociedade, que vota nesses governos, não acredita mais, como acreditou no passado, que a educação é um bem inestimável etc. Que nada! Nossa sociedade atual, principalmente os homens, está convencida que há um meio de viver melhor sem precisar passar por escola ou boa escola. Antes vivíamos o que alguns chamaram de “a ilusão liberal”, quando acreditávamos que a educação poderia melhorar nossa vida individual e social, hoje, essa “ilusão liberal” que, enfim, tinha lá sua dose de verdade, é apenas retórica falsa de qualquer partido. A ilusão virou cinismo.
Você coloca a emergência do debate sobre direitos das minorias como reflexo de uma situação econômica confortável. Existe o risco de passarmos “da barbárie à decadência” sem passar pela “civilização”?
Creio que a discussão dos direitos humanos envolvendo não só os direitos individuais, mas também os direitos de minorias, iria se ampliar entre nós estivéssemos ou não emuma situação econômica mais confortável que no passado. No entanto, a ampliação desse debate é claro que tem a ver com o “fôlego” que ganhamos com os governos FHC e Lula/Dilma. Esse debate está andando a todo o vapor e tudo parece indicar que vamos ganhar cada vez mais condições de enfrentar nossas carências a respeito de direitos humanos.
Claro que os direitos de minorias estão agora se adiantando em relação aos direitos individuais. Em outras palavras, temos feito menos por pessoas individualmente abordadas pelo Estado, como o caso de pobres que vão presos, do que temos feito pelos gays, mulheres, negros e índios. Temos de harmonizar o andamento dessas duas frentes.
Além disso, temos feito menos em educação do que eu gostaria, e esse elemento é central para que tanto os direitos civis quanto os direitos de minorias se consolidem e se ampliem. Não que tenhamos gasto menos ou pouco em educação. Não, não é isso. O governo Dilma tem gasto em educação mais do que em outras áreas. Temos gasto de um modo que os resultados não aparecem. Temos negligenciado sistematicamente o problema do salário dos professores. E isso é um ponto fundamental na discussão dos direitos humanos. Não porque a educação vai nos trazer consciência de direitos, como pensavam os liberais tradicionais e, de certo modo, ingênuos. Não é bem isso. Mas é que a educação permite que as necessidades das pessoas se tornem mais sofisticadas, e quem tem uma vida mais sofisticada quer ser tratado melhor como cidadão e como minoria. Isso muda a face de uma nação.
Como o educador pode abordar questões como aborto, homossexualidade e racismo?
No meu livro o educador não é exclusivamente o professor. É também o professor. Gramsci dizia que a escola dos adultos é o jornal. Essa ideia é ainda mais válida hoje, para o Brasil, quanto ao papel de imprensa. Um número muito grande de pessoas levanta de manhã e já liga o computador abrindo os sites dos grandes jornais, ou então, correndo para o trabalho, manipula dispositivos móveis de informação que unificam texto escrito com TV e rádio. O que essa pessoa busca não é mais só informação, mas formação. Os jornais sabem disso e, uma vez na internet, ampliaram ainda mais, com os blogs, a função dos que escrevem mesclando informação com formação. Os bons jornais possuem mais colunistas que no passado e, além disso, estão ampliando sobremaneira o potencial disso com os blogs oficiais. Penso nesse tipo de atividade educativa quando uso a palavra “educador” no título do meu livro, a dos que possuindo melhor formação escolar-intelectual, estão na internet, principalmente em associação com a imprensa profissional. Penso que o jornal tem de intensificar sua colaboração com os professores universitários já mais velhos, de modo a dar condições a eles de virem a exercer a função de intelectuais na mídia moderna. A universidade por ela mesma não vai fazer isso. Não a universidade brasileira. É da imprensa livre, profissional, liberal que espero que venha a iniciativa de não perder essa mão de obra da formação-informação que ainda é boa no Brasil.
Sobre o sistema de cotas nas universidades públicas, não seria adequado a melhoria do ensino público para que negros –maioria pobre– e pobres pudessem disputar vagas em paridade com alunos de escolas particulares?
O maior erro que se pode cometer ao olhar para o sistema de cota étnicas é achar que ele é um sistema que visa promover o negro. De modo algum. A direita e a esquerda erram ao avaliar assim. O sistema de cotas étnicas é um sistema para o branco, não para o negro, seu objetivo é fazer com que o branco possa ver o negro onde até hoje não viu e, assim, percebê-lo como “um de nós”, baixando a guarda do preconceito. O sistema de cotas étnicas é diferente de outros sistemas de cotas (para deficientes, pobres etc.): ele não visa promover indivíduos, ele visa, pela convivência, diminuir estranhamentos. As pessoas confundem demais essas coisas. O próprio discurso da esquerda, na hora de defender esse sistema, erra feio ao falar em “resgate histórico” ou “divida histórica” etc. Esse sistema não serve para tal. Sua utilidade é outra.
É função de o educador coibir piadas com teor racista ou sexista ou elas são inofensivas?
É função de qualquer pessoa que se proponha a ser um educador, em sentido lato ou não, promover sempre uma reflexão sobre essas questões e fornecer opções para a reformulação da linguagem aos participantes. Se essa pessoa é uma pessoa informada pelo meu livro, ela vai tentar ver se é possível sair para uma situação pós-conceitual ou não. Não adianta vir com regrinhas de censura ou regrinhas de liberdade. Os conservadores querem que “todos possam agredir todos”. Já fizeram até livros malhando o politicamente correto, mas escolhendo muito a dedo o que chamaram de politicamente correto. Eles dizem que falam em nome da liberdade. Claro, falam isso quando não se trata de alguns de seus familiares estarem na berlinda. Os não conservadores, por sua vez, querem proteger todos. Ora, falam isso mas não se cansam de, na mesa do bar, pedir licença para contar uma piada politicamente incorreta. Ou seja, se pedir licença, então pode? Os dois lados evitam pensar caso a caso e evitam refletir e tentar ver se é ou não possível escapar do maniqueísmo e passar para a situação pós-conceitual. Estão muito preocupados em falar para suas claques. Isso por enquanto. Mas isso vai passar e aí eles vão ter de inventar outra coisa para chamar a atenção de suas claques.
O “politicamente correto” erra ao caçar autores como Monteiro Lobato ou, pelo contrário, deveríamos banir o Sítio do ensino? Pedrinho dá continuidade ao preconceito?
Nem um coisa e nem outra. Tanto aqui no Brasil como nos Estados Unidos há quem teve êxito ao pegar a onda conservadora que se juntou a uma rebeldia de direita, que engoliu até a esquerda, com essa conversa de condenar o politicamente correto. Mas isso é algo muito passageiro. É uma reação por liberdade, contra a filosofia que conceitua demais e que pela definição quer amarrar a linguagem. Mas tal rebeldia ataca antes a caricatura do politicamente correto que propriamente o politicamente correto.
Quando a caricatura ultrapassou a própria imagem original, aí os conservadores perceberam que podiam tirar vantagem disso e que seria interessante reivindicar o fim do politicamente correto e uma volta às formas anteriores de falar. Mas o que ocorreu, como sempre, é que as coisas andaram mais rápidas do que os conservadores esperavam e também mais rápidos do que os não conservadores imaginavam. Ou seja, do preconceito passamos à denúncia do novo conceito e agora, para muitos, o melhor é o pós-conceito –que é a situação que eu defendo e que já havia escrito desde 1999. Veja a novela da Globo que deu permissão para muito de falar da “bicha má”, o Félix (Solano).
Há pouco tempo usar a expressão “bicha má” seria uma prática sujeita à crítica do politicamente correto e, ao mesmo tempo, teríamos os conservadores gritando feito loucos na mídia pelo direito de chamar uma bicha má pelo nome de “bicha má” e pronto. Mas estamos já vivendo um tempo que o grito dos que tiveram chilique com a caricatura do politicamente está passando. A “bicha má” é simplesmente uma expressão descritiva e tanto conservadores quanto não conservadores, em uma era pós-conceito, podem ver a novela e curtir, sem ficar discursando contra ou a favor. Claro que há retardatários que ainda estão criticando o politicamente correto e há os que nem nele chegaram, mas a história e a filosofia não caminham juntas.
A linguagem é uma ferramenta fundamental na continuidade (ou fim) de uma prática de intolerância e preconceito?
A linguagem não é meio. A linguagem é uma atividade humana. Ela é o limite do nosso mundo e, de certa maneira, o que somos. Por isso quando falamos mudamos a vida, porque falar não é jogar sons no ar, é mudar o mundo em que vivemos nos inserindo em uma “guerra semântica” (Rorty). Antes de falarmos X o mundo era um, depois é outro porque tem um elemento novo, X, pois é o mundo que comporta algo que antes não existia ainda. Agora, o problema todo, no campo da filosofia, é quanto a palavras e conceitos. Quando falamos demais em conceitos criamos junto com eles preconceito e intolerância. Porque os conceitos sempre são circunscrições e, não raro, eles deixam elementos de fora que poderiam não ter ficado de fora, não deveriam ter ficado de fora. Nesse sentido, prefiro antes falar com palavras que com a elaboração de conceitos no âmbito da filosofia. Tenho receio que a filosofia que se define como produtora de conceitos apenas seja um platonismo indigno do próprio Platão. Ou seja, aquele platonismo ridicularizado pelo cínico Diógenes. Ele teria visto Platão falar que o homem poderia ser conceituado e, então definido, como “bípedes sem penas”, e aí ele depenou um galo e jogou no terreiro dizendo: “eis aí seu homem, Platão”. Bem, diante disso, Platão teria reformulado o conceito de homem: “um bípede sem penas com unhas chatas”. Espero que o leitor não tenha unhas que não são chatas, pois, se tiver, não é homem e, então, como o Pitoko, meu filho cachorro, terá de usar o elevador de serviço.
Em “Educação após Auschwitz”, Adorno pede esforço para evitar uma nova barbárie. A “palmada pedagógica” hipotética do filósofo –no caso da criança que arrancou as asas do inseto– é um recurso aceitável para impedir futuras crueldades?
Não existe educação que não seja alienação. Os marxistas e os hegelianos não entenderam isso porque a alienação era uma noção negativa para eles e a educação, como bons iluministas, algo positivo. Mas sabemos bem, pela nossa prática, que não aprendemos por acúmulo e sim por alheiamento. Ninguém aprende algo novo e mantém um comportamento velho. Se isso ocorre não podemos dizer que aconteceu a educação. A educação é justamente a aquisição de novo comportamento com o abandono do velho comportamento. O que há é que realmente somos forçados a abandonar o que sabemos e começarmos a agir de outra maneira, se somos educados. A maioria das nossas práticas é assim. Até mesmo o aprendizado de uma segunda língua é assim. Quando aprendemos bem uma segunda língua é bobagem dizer que conservamos a linguagem anterior. Não a conservamos. O que temos que se parece com a linguagem anterior não é mais a linguagem anterior de forma alguma. Quando voltei de trabalho no exterior, eu passei a escrever em português de modo diferente e tive de criar um estilo próprio, o Paulo Ghiraldelli era outro e falava novo português. Esse processo de educação inclui reprimendas e no limite repressões que geram sublimações. Caso sejam repressões que geram outras repressões, o final é apenas o aprendizado de ser reprimido. É isso que a proibição à “palmada pedagógica” quer evitar, que os processos repressivos que permitem a alienação e, portanto, a mudança de comportamento e o aprendizado real, acabem por apenas ser um conjunto de repressões. Eles precisam ser sejam motores para a sublimação, não para o aprendizado de como ser reprimido. Mas, também aqui, os conservadores possuem dificuldade de entender. Eles têm a cabeça dura. E eles acham que Adorno estava defendendo a violência contra a criança. Não, Adorno estava dizendo que a sublimação pode começar por um cerceamento, mas se for para terminar nele, a única coisa a ser aprendida é a de ser um derrotado. Será que é tão difícil de entender isso que estou dizendo?