Publicado na Folha de São Paulo 03 de julho de 2005
Os filósofos Richard Rorty e Gianni Vattimo dialogam na tentativa de separar o joio do trigo na religião
Os anos 60 e os 70 do século 20 foram a época de apogeu do “fim da religião” entre os jovens. A década de 90 viu a religião voltar para a vida da juventude. Filósofos como o religioso Gianni Vattimo e o anticlerical Richard Rorty, que tiveram diálogos reunidos pelo teólogo Santiago Zabala no “The Future of Religion”, estão atentos ao aumento do número de fiéis. Eles se preocupam com a saída da religião da esfera privada e seu possível retorno para a esfera pública.
Para ambos, o problema que vivemos não é o das pessoas adotarem ou não religiões, mas sim o das pessoas levarem o dogmatismo quase que inerente à religião para fora do campo íntimo. Isso seria um complicador da vida democrática. No entanto ambos enxergam o mundo ocidental como um mundo melhor após a adoção do cristianismo como guia para comportamentos morais -uma disposição para a justiça calcada no amor ao próximo em vez de regrada pela idéia de “dente por dente e olho por olho”.
Histórias do Novo Testamento não se tornam menos importantes se tomadas como ficção nem mais convincentes se validadas como verídicas
Mas como manter a idéia de que a moral cristã -uma moral religiosa, afinal- colabora com a nossa prosperidade e, ao mesmo tempo, lhe negar qualquer legitimidade se, para tal, for necessário dizer que ela é expressão da verdade?
Rorty e Vattimo podem ser tomados dizendo: a religião só perde e só nos faz mal saindo do campo da intimidade. Ela não ganha nada, e nós bem menos, se quiser se tornar um conhecimento objetivo, algo com a pretensão de espelhar “a realidade como ela é”. Todavia a religião como vivência, em especial o cristianismo, pode colocar a idéia e a prática da “lei do amor” como válida por meio das histórias morais que pode contar. O Novo Testamento traz um bom número dessas histórias. Elas não se tornam menos importantes se tomadas como ficção. Nem se tornam mais convincentes se validadas como verídicas por historiadores.
Penso que o que Rorty e Vattimo poderiam endossar é o uso pragmático do Novo Testamento. Por exemplo, se quero falar para os jovens da tolerância e da solidariedade entre etnias, o melhor não seria recolocar a conversa de Jesus sobre o samaritano? Os samaritanos eram pessoas consideradas como péssimos exemplos a serem seguidos, segundo a crença da época. Quando Jesus foi questionado sobre como levar a vida segundo seus ensinamentos, ele, com sua ironia peculiar, apontou para o comportamento do samaritano que ajudou um desconhecido, após este ter sido assaltado.
Veracidade irrelevante
A idéia de Jesus é clara: mostrar que o pertencimento a um ou outro povo é secundário, ser de uma ou outra raça é irrelevante, o prioritário é agir de modo desprendido por amor, por solidariedade, corajosamente. Essa história de Jesus era verdadeira? Tanto faz! E a própria história de Jesus ter contado tal história é verdadeira? Tanto faz! A moral nela contida e seu ensinamento são válidos para nossa conduta independentemente disso. Aliás, muitos que se dizem cristãos nem mais se importam em saber se na hóstia consagrada há alguma divindade ou não. A prática do samaritano é o que vale.
A mesma idéia pode servir em uma centena de outros exemplos do Novo Testamento. No caso do perdão à prostituta, na situação de não lavar as mãos à mesa, na dúvida de Jesus sobre Deus quando na Cruz etc. Todas as facetas humanas de Jesus são as que importam para colocarmos na jogada novos vocabulários de deliberação moral capazes de nos levar a um outro mundo: nessas conversas, a palavra “justiça” se desassocia das palavras “vingança” e “reparação” para se tornar amiga das palavras “perdão”, “solidariedade” e “amor”. Essa nova associação entre palavras muda falas e atos e assim faz sem ter de responder se há verdade ou não nos discursos em que aparecem.
Essa religião de um “Jesus pragmatista” é o que entendo que vem no mesmo sentido da “abertura” da filosofia em relação à religião que, em nossos tempos, é uma abertura da filosofia em relação a uma boa parte da juventude. Os diálogos do anticlerical Rorty e do religioso Vattimo estão nesse caminho. Este é um bom livro, que valeria a pena ser traduzido.