Publicado na Folha de São Paulo 10 de abril de 2005
Sai nos EUA mais um volume das obras de Donald Davidson, principal filósofo analítico das últimas décadas
No poente do século 19, as ciências humanas de historicistas e positivistas nos deram modelos da interação entre nós e o mundo que apontavam para dois tipos de relações: (a) causais e (b) racionais.
(a) Uma bola de bilhar rola e bate em outra bola, que, então, começa a ser mover. Alguém pode ser observado agindo sobre outras coisas ao seu redor como nos choques das bolas -causalmente. Descrições de seqüências causais dariam a explicação do ocorrido.
(b) Alguém dá uma bofetada em outra pessoa após ouvir dela um palavrão. Falar de choque de corpos, aqui, parece não ajudar muito. Melhora se nos colocamos no lugar de cada contendor e tentamos imaginar o que cada um pensou e sentiu; então, acreditamos que descobrimos os motivos de tais ações. Descrições de razões forneceriam uma compreensão (uma interpretação) do ocorrido.
A razão é causa quando é a razão que explica a ação
A filosofia norte-americana, em especial com Donald Davidson (1917-2003), muito provavelmente irá dar um novo rosto para as ciências humanas no século 21, pois ela vai nos ensinar a deixar de lado a distinção, em espécie, entre explicação e compreensão. Pois a Oxford University Press concluirá a publicação dos cinco volumes da obra de Davidson. Quase todos os principais textos do mais importante filósofo analítico do último quarto do século 20 estão nesses volumes.
Davidson, nos anos 60, disse que não explicávamos uma ação humana -um ato físico de mover o braço ou de emitir um som- se déssemos só as causas do ocorrido (tomando a palavra causa, aqui, como completamente distinta de razão, ao gosto de positivistas e historicistas). Também não ajudávamos muito a compreender o caso se, por outro lado, tomássemos as razões do ocorrido como não gerando, diretamente, o ocorrido. Ele queria dizer que, para termos uma descrição que viesse a nos dizer satisfatoriamente o que ocorreu, tínhamos de borrar a linha divisória entre causas e razões, e considerar a razão como causa. A razão é causa quando ela é a razão que explica a ação.
Assim, se alguém faz uma ação, por exemplo, pula para trás diante da visão de um grande cachorro que surge na porta, tal ação foi causada não exclusivamente pela visão (ou melhor, percepção) que tal pessoa teve do cachorro, mas por dois outros elementos: uma crença e um desejo. Esse par de crença e desejo é a razão que causou a ação. Qual crença? A de que o cachorro grande pode ferir. Qual desejo? O de não querer ser ferido. A razão pela qual houve o pulo é, então, a causa: ela fez alguém (o que viu o cachorro) pular para trás. Se assim se diz, então, houve uma boa explicação do episódio.
O termo explicação, aqui, já não se diferencia mais de compreensão (ele diz tudo o que precisamos saber). Não se poderia dizer que houve o pulo pelo fato de o agente jogar seu corpo para trás -isso não seria uma explicação satisfatória.
Mas pode restar uma pergunta: como nós, cientistas e/ou filósofos, usando essa formulação de Davidson, encontramos aquela razão que é a efetiva causa do evento, do fenômeno ou situação ocorrida que observamos?
Davidson toma a teoria da decisão do matemático Frank Ramsey (1903-1930) para dizer que entre as crenças e desejos (que formam uma razão da ação, que é também a causa da ação) do agente, aqueles escolhidos teriam de ser os que maximizam bons resultados e minimizam prejuízos. Isso pode, talvez, não funcionar na prática empírica de um cientista (um sociólogo ou psicólogo social de campo).
Mas, como modelo filosófico, mostra que, sem nenhuma metafísica, temos um quadro que garante ser plausível acreditar que podemos identificar qual razão apanhar, entre várias, como sendo aquela que muito provavelmente gerou a ação, e que, portanto, é aquela razão que não só explica a ação mas é a causa da ação, do evento, do ocorrido.
Assim, quanto à pessoa que pula para trás, é bem plausível ponderar que ela tinha tudo para levar a sério a crença de que um grande cachorro é perigoso e, também, tudo para achar que teria mais lucro -que seu desejo de não se machucar era importante- se afastando rapidamente. Ela agiu pragmaticamente.
Se assim ela age -e é razoável dizer isso de comportamentos-, temos um modelo que nos garante que podemos saber delimitar qual a razão, que é então a causa, que temos de escolher para descrever e explicar o ocorrido entre um organismo humano e seu ambiente.
Assim, para além do neokantismo de positivistas e historicistas, causas e razões pertencem ao mesmo mundo e, para além do desinteresse defendido pelo estudo tradicional do comportamento (em ética e psicologia), aceitar o pragmatismo é o melhor meio de se pinçar a razão que é a causa da ação, ao menos em teoria. Mas o que faz a filosofia, neste caso, senão teorizar?