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06/05/2016
Como Richard Rorty, Peter Sloterdijk é um filósofo escritor. Ele cuida do texto. Brinca e joga com as palavras. Traduzir Richard Rorty não é para qualquer um. O mesmo posso dizer quanto a Sloterdijk.
Do mesmo modo que Thomas Macho, seu colega filósofo, antropólogo e teórico da mídia, Sloterdijk toma a “linguagem como casa do ser”, a expressão de Heidegger, e a insere no interior de um universo antropológico, vendo então os processos que foram capazes de gerar o homo sapiens. Para Sloterdijk o homem é fruto de habitação e cuidado, ou seja, casa e mimo. Mimo? Sim!
Eis aí um problema que não é somente um espinho de tradução possível de ser resolvido por técnicas do tradutor, mas que envolve conceitos e conhecimento filosófico. Sloterdijk trabalha com conceitos e metáforas heideggerianas, mas ele têm o habito de fazer o inverso de Rorty. Este era um criador de metáforas, Sloterdijk é um leitor literal de metáforas. “Casa do ser” e várias outras expressões de Heidegger que envolvem metáforas ligadas ao lar, habitação, morada e assim por diante, são tomadas por Sloterdijk literalmente. Para ele, não haveria homo sapiens se não houvesse a topologia geradora de casas capazes de funcionar como incubadoras, como invernadas, como capazes de fazer gerar rotina. Para expressar isso, Sloterdijk joga com o seu jargão alemão.
Das Gewöhnen e das Verwöhnen são nomes que podemos traduzir, respectivamente, por hábito e mimo. Ambas as palavras têm suas raízes no verbo wohnen, que é viver-em ou habitar. Assim, o jogo de Sloterdijk é aproximar habitar ou viver-em às práticas que criam hábitos e também, claro, às práticas de mimos, cuidados especiais. A casa é o lugar do mimo e ela é a formadora do hábito. A topologia e o espaço ganham, então, toda uma nova dimensão teórica. Das metáforas de Heidegger ao jogo de palavras de Sloterdijk nasce uma “reconstrução fantástica” que propõe uma narrativa capaz de apontar para as “antropotécnicas”. O que são? As técnicas levadas adiante pela casa ou habitação na formação de hábitos que estão envolvidos com mimos. O homem é o mimado pelo lugar. Ele se torna então o “designer de interiores”, um ampliador de mimos que o geraram.
Essa forma de ler a sugestão de Heidegger de utilizar metáforas espaciais causa um problema para o tradutor, mas mais ainda para o leitor desavisado e repleto de pré-conceitos. Quando escrevemos que Sloterdijk mostra a modernidade como um processo que pode ser visto por meio do palácio de cristal (o das Grandes Exposições e também dos escritos de Dostoievski) que, enfim, seria um criador de patamares de mimos, muitos tomam a palavra mimo, nesse caso, como uma denúncia: lá está o pensador denunciando a modernidade como tendo gerado a juventude mimada. E eis que a fúria momentânea contra a docilização do homem, de cunho conservador (mas que pode pegar não conservadores, claro), logo vem com o seu carretel de julgamentos morais, e o conceito de Sloterdijk se perde. Ele não está falando de mimo como o paparicar, como o que se faz para “estragar” uma criança. Ele está acreditando que essa acusação, a de “estragar criança”, é velha, já passou, e que é possível agora usar “mimo” como um termo descritivo. Ele diz claramente isso.
Ora, no Brasil, setores conservadores e progressistas ainda estão no embate, inclusive por conta da retardada volta da reação contra o politicamente correto (ai meu Deus, como tem escritor no Brasil que inventa a roda!). Aqui ainda estamos na fase de, junto aos conservadores, falarmos que direitos sociais mimam as pessoas, que cotas mimam os pobres, que os jovens de classe média são mimados por seus pais etc. Ora, para a leitura de Sloterdijk não importa se isso é verdade ou não, o que importa e´que essa formulação deve ser esquecida se quisermos entendê-lo. Ele está partindo do pressuposto que a luta contra o mimo já acabou, e que agora ele pode usar essa noção como descritiva na própria narrativa antropológica de surgimento do homem (o que ele chama de “reconstrução fantástica). Mimo se torna para ele o que ocorre no lugar de mimo, a casa. É isso que ele está fazendo ao unir mimo, hábito e casa, o que lhe é facilitado pela sua língua.
Mas mimo, então, não tem a ver com o sentido comum de paparicação e infantilização? Sim, tem. É aí é que a investigação se torna interessante filosoficamente. O que Sloterdijk diz é que há uma infantilização – em um sentido nada negativo – que só se realiza no ninho enquanto o lugar – e a palavra lugar, nesse caso, é importante – que se faz passar de habitação para casa, para lar. E isso não é algo só humano. Ocorre nos mamíferos a neotenia, que nada é senão a transmissão de características juvenis do indivíduo para a espécie. O homem adulto é sempre criança. Muitos mamíferos mostram essa características de parecerem nascer antes da hora, e depois. A espécie toda guarda uma genética que permite o espalhamento desse traço infantil para todos os seus membros. Ser imaturo deixa de ser um acaso e, graças ao mimo de uma uma habitação fixa, dá a chance desse indivíduo sobreviver e espalhar seus gens que, na manutenção da habitação que proporciona o mimo, o faz gerar sua espécie em versão inovadora. Assim, a infantilização do homem lhe é inerente e, se ela desponta na modernidade a ponto de ser notada por educadores e conservadores como um mal ou uma excentricidade, ela é na verdade a nosso chance de plasticidade, o nosso bem.
Espero que essa dica ajude os tradutores de Sloterdijk no Brasil. E também os professores. Principalmente agora, nesse ano, no qual o filósofo estará no Brasil em outubro.
Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.
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