Publicado na Folha de São Paulo 24 de julho de 2005
Nos EUA, o casamento torna-se um imperativo tão forte para homens quanto para mulheres
Ninguém gosta de ser traído. Mas nossas avós e mães tinham o costume -que diziam ser uma virtude- de não desfazer um casamento por conta da aparição de uma, duas ou mais amantes de seus maridos. Imperativos econômicos, éticos, legais, religiosos e de hábito as faziam suportar seus maridos vindos já requentados da cama alheia.
Minha geração, a dos jovens escolarizados dos anos 70, motivados pelos ecos de maio de 68, proclamou o casamento como uma “instituição falida”. Vários entre nós agiram assim por conta da “liberdade”. Outros por conta do ressentimento, afinal nem todos viram seus pais e avós felizes.
Os jovens dos anos 80 e 90, diferentemente, voltaram a sonhar com o casamento completo, aquele com casa, filhos, cachorros e profissão estabelecida. Acreditaram que poderiam ser felizes assim, e que a amante iria ficar desnecessária, uma vez que havíamos chegado a uma época na qual tudo de que precisávamos já havia ocorrido: liberação sexual, independência financeira da mulher, mudança da legislação de separação etc. Os casais jovens, com parceiros da mesma idade, podem dizer se isso vingou ou não.
A idéia de que “fora do casamento não há vida” está embutida na mentalidade norte-americana
Nos Estados Unidos, a idéia do “casamento certinho” nunca saiu da moda. Os Estados Unidos continuam sendo a terra da democracia casamenteira. Casar e ficar casado, agora, é um imperativo tão forte para os homens estadunidenses quanto foi para as mulheres no passado. E eles pagam um preço alto por isso.
Mas não adianta, hoje, querer achar que isso tem a ver diretamente com a cultura religiosa e nem é o caso de acreditar que, como foi no passado, os norte-americanos são incentivados a criar netos para a manutenção do futuro dos EUA. É certo que fé e patriotismo não desapareceram nos Estados Unidos, incentivando todos a ficarem casados custe o que custar. Mas isso não diz tudo. Qual a razão disso?
A explicação está em “A Vida Secreta dos Dentistas”, do diretor Alan Rudolph, em cartaz em São Paulo. Um dentista de 38 anos é traído por sua mulher (também dentista e da mesma idade), mas ele não opta pela separação. Quanto mais traído, mais ele fica dedicado aos filhos, ao trabalho e aos afazeres domésticos que poderiam ser dela, da mulher. A vida dele é um inferno. Eis que então ele arruma um alter ego. Tal “eu” se apresenta imaginado como um de seus clientes -um músico descasado com vida boêmia e, por alguns indícios, incapaz de se sujeitar aos sacrifícios que o casamento norte-americano implicaria.
Imperativos irracionais
O filme é a batalha do dentista com seu alter ego, que no decorrer da história passa a disputar ideologicamente com o dentista, querendo convencê-lo de que “não há felicidade (sexual e outras) dentro do casamento”. Aos poucos, o público percebe que não está acompanhando somente o drama do marido traído mas também está curioso sobre o destino do alter ego, que joga todas as suas forças a favor do seu modo de vida. O alter ego perde a disputa? O marido expulsa a mulher de casa ? Ou ela opta por deixá-lo de uma vez ?
O casamento é um dos temas preferidos de bons filósofos e escritores. De Kant a Henry James. Este último, por sinal, adorava escrever sobre maridos norte-americanos que, preocupados em fazer funcionar o império industrial, não davam atenção para suas mulheres como manda o figurino. Elas, então, procuravam os europeus.
No filme, a dentista não procura um europeu propriamente dito, mas alguém com cultura européia, não-tecnológica e, portanto, não tipicamente norte-americana. O marido suporta. Mas sob essa casca estão não mais somente imperativos de ordem racional para que o casamento se arraste.
A idéia de que “fora do casamento não há vida” é algo que se mostra embutido na mentalidade norte-americana. O dentista tenta explicar ao alter ego qual a razão de não se rebelar contra aquela situação. Faz um discurso evocando razões práticas, ou seja, o quanto de trabalho seria um divórcio, o inferno que seria para os filhos. Mas deixa escapar, duas ou três vezes, seu ódio pelo pai. Não teria sido seu pai o exemplo antiamericano? Aquele que não manteve o casamento como deveria ser mantido? Não há só ideologia ali no filme. Há, sim, a questão da mentalidade. “Marry me and keep it working” [Case comigo e mantenha o matrimônio] é algo que está nas entranhas da psique dos EUA. Não é mais necessário patriotismo e religião para segurar os casamentos norte-americanos -eles se seguram por mecanismos do limbo.
No filme, é interessante ver o alter ego derrotado em sua vida de não casado, no banco de uma parada de ônibus. A vida errante e solitária é a pior vida. Pior do que a vida do traído. Pois o traído poderá, com obstinação, ser um ex-traído. O solitário, aquele que não entendeu os preços do “American Way of Life”, vai sofrer mais. Eis aí uma moral eterna da América. Uma de suas forças, na paz e principalmente na guerra.