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Na trilha do filósofo italiano Giorgio Agamben, escrevi que os animais tem voz, enquanto que o homem não. O cão late e o pato grasna. Nós não temos um nome para a nossa voz, pois ela não existe.  O que chamamos de a voz do homem é uma não-voz. É a linguagem. “Torna-te aquilo que tu és”, disse Nietzsche. E para cumprir tal desiderato, para sermos humanos, temos de adquirir a linguagem e, então, ter algo que é a nossa voz. Ou fazemos isso até mais ou menos dez anos de idade ou nada nos colocará como humanos. (Ghiraldelli, P. Ensaios sobre Giorgio Agamben. São Paulo: CEFA editorial, 2020).

A partir do filósofo alemão Peter Sloterdijk, escrevi que o homem é o animal que tem mãe. Os outros animais possuem progenitoras. O homem precisa de mãe porque antes de tudo precisa de útero, o lugar no qual convive como um duplo (placenta e futuro feto) e, nessa relação inicial, se predispõe para a linguagem, para a sociabilidade e, claro, para a solidariedade (Ghiraldelli, P. Para ler Sloterdijk. Via Vérita, Rio de Janeiro, 2017)

De Agamben lanço a ideia, propriamente dele, de que quando cantamos (ou poetamos) tentamos ouvir a voz que seria a voz humana, isto é, tentamos nos livrar da linguagem – uma tentativa, claro, só uma tentativa. De Sloterdijk lanço a ideia, tanto dele quanto minha, de que estamos sempre tentando voltar para casa, o útero materno – em todos  os sentidos, inclusive arquitetônico: iglus, ocas e apartamentos singles.

A partir disso tudo que disse acima, volto-me para um assunto correlato que sempre se fez presente em minhas pesquisas: o corpo. Nisso, deparo-me com a reflexão de um terceiro personagem dessa nossa peça, o filósofo italiano Franco Berardi. Em seu livro Asfixia, Berardi fala dos níveis de abstração que o capitalismo produz, tanto na sua faceta relacionada à financeirização quanto no seu correlato tecnológico que é a criação da infosfera virtual. Focalizando atenção nessa segunda instância, ele lembra da sua velocidade e consequências.

“A abstração digital”, diz Berardi, “leva à virtualização do ato físico do encontro e da manipulação das coisas”, e a “abstração financeira leva a uma separação entre a circulação do dinheiro e o processo do valor em si mesmo”. São níveis novos de abstração. Eles se relacionam com os processos de trabalho. Terminam por englobar “todos os espaços da vida social”.  “A digitalização e a financeirização vêm transformando a essência do corpo social e induzindo mutações.” (Berardi, Franco. Asfixia – capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem (p. 70). Ubu Editora. Edição do Kindle). O processo de produção como um todo se funde na infosfera. Tudo se acelera. A produtividade se transforma exatamente na “aceleração dos fluxos de informação”.  O resultado é que “transtornos mentais e psicopatologias são sintomas desse processo dual de desrealização e de aceleração virtual”. Essa alterações estão vigentes no ambiente social e foram causadas “pela abstração digital” (…) “e pela virtualização da comunicação social em geral”. Podemos notar que isso “afetou os processos de aprendizado, de fala, de imaginação e de memorização”. (idem, ibidem, p. 70).

“Se eu confio no significado das palavras”, continua Berardi, “é porque a relação entre o significante e o significado foi inicialmente garantida pela autoridade afetiva da minha mãe”. Sabemos que “na linguagem, o significado não depende apenas da submissão à sintaxe e da interpretação semântica. Ele depende da confiança, da afeição”. Ora “na esfera do capitalismo neoliberal e da captura das energias nervosa e física do feminino pelo maquinário de exploração global, as mães são cada vez menos a fonte da linguagem”. Não dá para não notar que “elas foram separadas dos corpos das crianças pelo trabalho assalariado, pelas redes de mobilização de suas energias mentais e também pela globalização do mercado afetivo.” (Idem, ibidem, pp. 70-71).

“Milhões de mulheres”, sustenta Berardi, “deixam suas crianças em Manila e em Nairóbi e vão para Nova York ou para Londres para tomar conta dos filhos de trabalhadoras cognitivas que deixam suas crianças em casa e vão para escritórios” O que temos, então são mães que “são substituídas por máquinas linguísticas que estão constantemente mostrando e contando”. Estamos criando a “geração conectiva” que “aprende a linguagem em uma estrutura em que as relações entre esse aprendizado e o corpo afetivo tendem a ser cada vez menos relevantes”. (Idem, ibidem, p. 71).

O filósofo italiano pergunta: “Quais são os efeitos de longo prazo dessa separação entre a linguagem e o corpo da mãe? Quais são os efeitos de longo prazo da automação do aprendizado da linguagem?  (p. 71). Sua resposta é um terrível “não sei”.

Se acredito, por causa de meus estudos em Sloterdijk, que o homem é um animal que tem mãe, e que nada substitui o útero e, portanto, o corpo da mãe, no trabalho das antropotécnicas, onde o homem cria o homem, a infosfera criada pelo capitalismo neoliberal pode me levar e entender que terei daqui para diante uma dificuldade de continuar gerando homens. A conclusão minha aqui é radical, talvez exagerada, mas não deve ser descartada em termos filosóficos.

Se acredito, por causa de meus estudos em Agamben, que o homem perde afetos pois deixa o lugar que seria o da voz para adquirir a linguagem – e isso é também algo que o próprio Berardi aprende com Agamben -, então esse processo se torna ainda mais problemático se a aquisição da linguagem é a aquisição de alguma coisa que nos reduz à comunicação que nos faz função de algorítimos. Se a linguagem já nos joga para um artificialismo, mais ainda isso ocorre se a comunicação agora é feita por uma linguagem completamente descorporificada.

Berardi não está preocupado com essa situação a partir da visão da psicologia ou mesmo da psicologia social. Como filósofo que ecoa 68, ele é daqueles que, como eu, pensamos prioritariamente na transformação social, na transformação política. Por isso ele diz que “quando o corpo social está programado por automatismos tecnolinguísticos, ele age como um enxame: um organismo coletivo cujo comportamento é dirigido de forma automática por interfaces conectivas. (Idem, ibidem, p. 12). A palavra aqui, “corpo social”, é importante. Pois aqueles que estão descorporificados individualmente, ao viverem exclusivamente na infosfera, não são mais educados, mas programados.  O corpo social passa a funcionar como enxame exatamente por razões dessa programação.

“Sob condições de hipercomplexidade social”, afirma Berardi, “seres humanos tendem a agir como um enxame. Quando a infosfera é densa e rápida demais para o processamento consciente da informação, as pessoas tendem à acomodação em comportamentos compartilhados.”  “Em um ambiente hipercomplexo”, continua ele, “que não pode ser devidamente entendido e governado pela consciência individual, as pessoas seguirão rotas simplificadas e usarão interfaces que simplifiquem as complexidades.” “É por isso que hoje o comportamento social parece estar preso aos padrões regulares e inescapáveis da interação.” Assim, “procedimentos tecnolinguísticos, obrigações financeiras, necessidades sociais e invasões psicomidiáticas – todo esse maquinário capilarizado está estruturando o campo do possível e incorporando padrões cognitivos comuns ao comportamento dos agentes sociais.” A conclusão de Berardi é plausível e assustadora; “Podemos então dizer que a vida social na esfera semiocapitalista está se transformando em enxame” Ora, “em um enxame, não há como dizer ‘não’. Seria irrelevante. Você pode expressar sua recusa, sua rebeldia e sua não adesão, mas isso não mudará a direção do enxame e tampouco afetará o modo pelo qual o cérebro dele processa as informações.” (Idem, ibidem, pp. 13-14)

Situações de atuação coletiva em que a falta de empatia é produzida por certo burocratismo das vias obrigatórias do Google e outros mecanismos semelhantes, e o dizer ‘não’ já nem é mais punido, mas simplesmente inócuo, criam uma forma de fascismo muito mais perverso que o fascismo gerado pelas programações do discurso hitleriano.  Um fascismo da infoesfera seria, então, a produção final vinda do neoliberalimo e do capitalismo financeiro digitalizado.

Eliminamos mães e ampliamos a nossa distância do que seria nossa infância (a época em que não falamos, mas sentimos!), mas, mais que isso, colocamos no lugar um caminho de desenvolvimento que nos joga, na vida adulta, a sermos partes do enxame, e não mais da simples multidão. Uma geração assim tem todo para ser menos empática e menos vítima de aceleradores químicas, as drogas que podem colocar cada um em acordo com o maquinário atual, isto é, o maquinário que nos faz parte dos algorítimos. Um fascismo sem Mussolini ou Hitler, mas do próprio cotidiano do capitalismo financeiro. Portanto, um fascismo contra o qual não se pode lutar, uma vez que não identificável em termos de lugar político.

2020 Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo

 

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