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Os países compram dos grandes laboratórios as vacinas para a sindemia da covid. A população é vacinada gratuitamente? Não! Todos pagam a vacina, através de impostos. Os laboratórios ganham duas vezes. Ganham com a venda da vacina, claro, mas também ganham antes mesmo de produzi-la ou sequer “inventá-la”, pois suas ações estão na bolsa, e eles próprios arregimentam agentes especuladores para poder fazer subir cotações. Não à toa durante o ano de 2020 os anúncios sobre a vacina começaram a cair na imprensa muito antes da existência de qualquer início de pesquisa!
No capitalismo é assim: pagamos por tudo, mesmo quando nos dizem que é gratuito. Isso é legítimo? Sim, se há algo que é de outro, então com certeza compramos e pagamos. Mas não faz sentido pagar por algo que é nosso. A vacina é, em grande medida, produto nosso, da sociedade. Eu explico.
O investimento em ciência e tecnologia de uma empresa, ou mesmo de várias, não produz nenhuma vacina. Os laboratórios ficariam dezenas de anos investindo e não conseguiriam nada, nenhum resultado. Isso é tão verdade que, no início da sindemia, a maior parte dos médicos dava um prazo para o aparecimento de vacinas de no mínimo uma década. Alguns falaram em cinco anos, mas alertavam que não seria uma vacina universalmente eficaz. Os médicos pensaram com a cabeça do presente, mas o capitalismo não mais funciona segundo o que entendemos dele. Nossa visão do capitalismo é aquela que a escola nos dá, a de Chaplin apertando parafusos em Tempos modernos. O aluno de cursinho aprende aquilo, vai para a faculdade de medicina e sai de lá acreditando que pode trocar o cérebro das pessoas, até a alma, por meio de operações que vemos em ficções científicas, mas a noção dele sobre o capitalismo continua sendo aquela do colégio, correspondente ao início do século XX. Se pudesse ler mais e notar mais a sociedade ao seu redor, não teria dado um prazo tão grande para o surgimento da vacina.
Muitos de nós imagina o capitalismo como vivendo em sua época fordista. Mas vivemos o pós-fordismo no mínimo desde os anos de 1980.
Educamos melhor todos, pela universalização da escola pública, e disseminamos o saber de um modo fantasticamente geral por meio de redes de internet colaborativas, desde meados dos anos noventa, exatamente como Lyotard prognosticou em 1979 em A condição pós-moderna. Isso foi o suficiente para criar aquilo que Marx previu, e que anunciou nos Grundrisse, no célebre “Fragmento sobre a maquinaria”: a existência de um poderoso General Intelect, um saber geral difuso, que cresce continuamente na sociedade. Marx viu essa possibilidade já no tempo dele, mas nós criamos o potencial para isso na época do capitalismo industrial do século XX, na época fordista, em especial nos chamados “anos de ouro”, do pós-Guerra aos anos sessenta. Sem esse saber do General Intelect, não teríamos um estágio cognitivo próprio para a produção de uma vacina, não no tempo que fizemos.
Nenhum laboratório, portanto, pagou pela “invenção” da vacina. O que essas empresas fizeram foi apenas deslocar alguns grupos de profissionais, delas mesmas ou terceirizados, para essa tarefa setorizada, uma sala com os dizeres na porta: vacina covid. Reunindo dados e percorrendo caminhos da rede de produção do saber, o que hoje é possível fazer por meio dos Big Data e rastreadores gerais, essas pessoas passaram a interagir com seus pares e, enfim, em um tempo record, chegaram à vacina. Quer dizer, chegaram às vacinas – claro, no plural, o que prova mesmo a existência do General Intelect e de nosso trabalho social gratuito. O custo disso foi baixíssimo. O lucro disso, altíssimo. A fama de que tecnologia é algo caro, então, precisa ser mantida. Mas isso é ideológico.
Portanto, além do saber que gerou a vacina ser social, também é social a experimentação. Nossas sociedades se transformaram em imensos laboratórios espontâneos, isso sem contar os grupos de testes arregimentados oficialmente, e pagos a preço de banana.
Por tudo isso, pagar por uma vacina, ainda mais em situação de distância social como a que temos, é completamente tolo. Cobrar é completamente ilegítimo. Pagar por algo que nós mesmos fizemos é coisa de tonto. Pagamos apenas por estarmos envoltos à ideologia, e porque desconhecemos o que faz o capitalismo.
Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo.
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