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Um jornal do estado do Paraná colocou como manchete: “De como o capitalismo produziu uma vacina contra a covid em tempo record”. Com tal manchete, o jornal queria propagandear os benefícios milagrosos da “iniciativa privada” e a importância do reinado do capitalismo.  O jornal não disse, no entanto, que a doença foi produzida pelo capitalismo! Nenhum vírus teria causado qualquer mal se a cidades, em especial a cidade chinesa de origem da doença, não fossem cidades organizadas segundo o capitalismo. Quando o lucro é a meta, o homem fica de lado. Sua saúde não interessa, a não ser que fique doente e isso leve ao capital enxergar ali uma maior chance de acumulação.

Biocapitalismo – eis o nome da coisa nessas circunstâncias.

Por isso mesmo os médicos, mesmo não conhecendo os conceitos de biopoder e biopolítica, acabaram por construir o conceito de sindemia. A covid é uma moléstia urbana que é produzida pelas condições de higiene da vida social e política de nosso tempo, e também a disposição contra ela depende da reorganização das condições de vida, em especial condições arquitetônicas e correlatas. A covid é então complexa. Não pode ser reduzida a uma questão estritamente médica, clínica. Naturalizar a doença só pode nos levar a produzir mais doenças inéditas e gerar mais casos de desorientação coletiva, como a que vivemos em 2020.

Mas a questão do capitalismo gerando a doença, pelo qual podemos chamar essa fase do capitalismo de biocapitalismo, não se resume a essa identificação. A sindemia de 2020 é também, antes de tudo, um elemento chave para entendermos como opera o capitalismo atual. Biocapitalismo é um capitalismo que extrai mais valia da vida. Essa é sua definição. Mas é também e principalmente um capitalismo que aglutina o capitalismo financeiro e o capitalismo cognitivo, e sem esse acoplamento não poderia extrair a mais valia social, que é a maia valia gerada nessa fase. Explico.

No capitalismo industrial o valor é mensurado pelo “tempo de trabalho socialmente necessário”, na fórmula inventada e consagrada por Marx. Os operários trabalham e o tempo em que trabalham serve de medida para o valor e para a mais valia, o valor que corresponde ao trabalho não pago, e que é a origem do lucro. No capitalismo em que vivemos a lei do valor-trabalho entra em crise. O trabalho imaterial, ou seja, nossa ação cognitiva e de afetos, feito em rede e, portanto, social em um sentido bem caracterizado, não é mensurável pelo tempo. Não é feito na fábrica, mas na sociedade, e parte dele é dependente do saber difuso comum, o que Marx chamou de General Intelect. E isso tanto do ponto de vista de seu conteúdo como da sua organização. A lei do valor-trabalho sai do campo, e entra então uma outra relação com o tempo. A extração da mais valia ganha outra maneira de agir. A sindemia da covid deixou isso claro. Trabalhamos para conte-la, especialmente em busca da vacina, coletivamente, isto é, socialmente, e o resultado, ou seja, a vacina, não deverá ser entregue para ninguém. Como uma plataforma virtual ou como um empréstimo, ela terá usuários, mas sem abrir mão do fato de ter se tornado propriedade privada.

Quando a doença começou, antes mesmo que qualquer empresa de pesquisa médica, os grandes laboratórios, começassem a pensar em vacina, os pesquisadores do mundo todo se voltaram para o assunto e começaram a trabalhar coletivamente, em rede, em uma subjetividade que fundiu homens e computadores e internet, acoplando e cruzando informações. Logo o saber difuso da sociedade, ou o General Intelect, que no limite é produzido pelo patamar de escolarização e o patamar de cultura que evoluiu rápido durante o capitalismo industrial, serviu como o propulsor dessa grande conversação científica. Só mais tarde, já sobre os ganhos da socialização desse saber difuso, é que os grandes laboratórios vieram a agir. Redirecionaram seus pesquisadores para a covid (sem qualquer gasto a mais dos seus orçamentos) e logo se aproveitaram do saber elaborado em comum pelos pesquisadores independentes para realmente criar pesquisas direcionadas, que de modo algum partiram do zero. Daí a mais valia social foi explorada em sua fase inicial.

Mas, em seguida veio a exploração maior ainda, que se deu através do carreamento da mais valia social para o campo do capitalismo financeiro. A partir de um determinado momento os grandes laboratórios começaram a competir pela produção da vacina, organizando a forma de coleta de resultados. Passaram a propagar pela mídia sucessos semanais, gerando intensa movimentação na bolsa de valores.  A vacina já não importava mais, mas sim os resultados postos em previsão, para que se pudesse dar continuidade à especulação. Que a vacina tenha surgido, foi alguma coisa que poderia não ter acontecido. Afinal, no que pese o dinheiro carreado para achar a cura da AIDs, temos aí meio século sem sucesso.

Assim, o lucro gerado veio das seguintes fontes: 1) pela apropriação do comum, sendo que foi este comum que gerou a vacina, sendo que esta, então, ficou cativa de patentes; 2) e também pela maneira de divulgar os resultados, o que colocou os laboratórios em dura competição. No entanto, tal competição não se efetivou pela produção das vacinas, mas pelo apresentado em possíveis lucros futuros para os acionistas, o que completou o lucro estupendo gerado em 2020 para acionistas de laboratórios e também para todo tipo de forma de seguro (derivativos) gerado nesse mercado. Ao terminar o ano, significativamente junto com empresas como o Facebook e o Google, surgiram os laboratórios médicos como os que lucraram de fato com a covid enquanto criação do capitalismo. O capitalismo não deixou de dar sequência aos malefícios de Wuhan e muito menos deixou de ganhar com ele – e muito – no contexto dos milhares de mortos produzidos. Empobrecemos, mas o capitalismo este ano tornou os ricos mais ricos.

O biocapitalismo é inextricavelmente ligado ao capitalismo financeiro. Ele é capitalismo cognitivo como biocapitalismo na medida em que usa exatamente não de uma força de trabalho destituída de saber, mas de uma força de trabalho que valoriza o capital exatamente porque detém o saber. Não medimos mais nossa força de trabalho e nossas mercadorias pela teoria do valor-trabalho, mas o trabalho continua sendo a fonte de riqueza, embora o dinheiro, separada da riqueza, possa gerar uma movimentação financeira que, enfim, se torna ela própria uma nova mensuração da valorização. É uma medida não quantitativa. Mas a medida dada pela fórmula anterior, o tempo de trabalho socialmente necessário, nunca foi de fato uma medida quantitativa.

Os adeptos de uma visão de futuro para além do capitalismo acreditam que o saber é não possível de ser totalmente dominado pelo modo de produção do capitalismo cognitivo, pelo biocapitalismo, e que é nisso que a crise vai se acirrar, e dar meios para que possamos pensar noutro tipo de organização social de produção da vida e reprodução da sociedade. É uma visão otimista. Mas não tola. Todavia, para os que não querem qualquer visão otimista, ainda assim penso que ganharão se entenderem a narrativa aqui fornecida. Penso que deverão entender que a sindemia pode melhor vista pela narrativa do biocapitalismo, ela explica bem como tudo que ocorreu em 2020 foi uma benção para a acumulação do capital.

©2021  Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo

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