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A vaca entrou na sala de aula. Não, não era uma escola rural. Era uma escola urbana, ainda que do interior. Ocorreu em 1965, ano em que minha professora iniciou minha turma no livro de “Conhecimentos Gerais”. Neste, havia um capítulo só sobre os animais. Foi o ano que encontrei a vaca. A vaca como conceito!
Ela entrou na minha vida, naquele ano hoje distante, muito bem desenhada. Garbosa, como que carimbada no papel do livro. Na classificação posta, que era o que tínhamos que aprender, lá estava: “animais nocivos e animais úteis”. O rato veio no primeiro quadrinho, a vaca no segundo. Não me lembro o que o rato nos fazia de “nocivo”, e creio nem ter entendido bem esse adjetivo. Mas a noção de “útil” eu peguei. Eis a “função” da vaca: dar leite, carne, couro e até mesmo material para nossos pentes, “pelos chifres e cascos”. Essa última “utilidade” me impressionou muito: a contribuição da vaca para a nossa estética! Dito hoje eu pensaria numa vaca de Werner Sombart, o sociólogo que insistiu que o capitalismo é fruto do luxo.
Eu imaginava que a vaca, então, ficava numa espécie de bazar, como aqueles que existiam no centro da cidadezinha, ao lado do cinema, do bar Marabá e da Igreja. A vaca devia ficar no balcão, entregando pentes para meninos e meninas. Deveria também, eu presumia, fazer o mesmo com a carne, leite e couro. Nunca me passou pela cabeça, durante aquele tempo, que a vaca não dava nada disso, mas que eram coisas que lhe eram tiradas à força, e que ela pagava com a sua morte tanto o nosso necessário quanto o nosso luxo. Também não fazia ideia, naquela época, que a coisa mais desnecessária de tudo no mundo é a carne, mas eu já sabia que comer carne era um luxo.
A vaca não existia para ser vaca, mas para ser vaca para o homem. Demorou um tempo para eu perceber que esse negócio do “para o homem” é uma invenção meramente humana. Um “puxar a brasa para sua sardinha”. Algo que Heidegger me ensinou, bem mais tarde, a não achar natural – o humanismo não é sempre o mocinho da história!
Acho que a vaca balconista me ajudou muito a não entender a palavra útil como subsidiária da palavra morte. Então depois, já adulto, ao me encontrar com as escola filosóficas do utilitarismo e do pragmatismo, não vi nelas nenhum horror como o que ocorre com outros intelectuais. Útil é alguma coisa efetivamente útil, não um subterfúgio ou eufemismo para fazer sofrer.
“Da vaca tira-se tudo” – assim foi que a professora explicou. Poderíamos falar bem do cavalo que, afinal, nos dava transporte e possuía a capacidade até de ser ator. Os filmes do Zorro mostravam bem que Silver não deixava por menos! Todavia, o cavalo não podia competir com a vaca, ainda que esta, nos filmes, aparecesse no papel de … gado! A vaca realmente nos dava tudo. Meu Deus! Como eu ainda estava longe do tempo que veio depois, quando as mulheres passaram a ser vacas, ao menos no vocabulário das meninas da classe. Elas riam de se chamarem por vacas. Demorei mais um tempo ainda para saber o que queriam dizer. Sim, eu era meio lento! Ou seja, eu era menino e não menina.
No meu novo livro de conhecimento gerais, o jornal, vi episódios em que as vacas brasileiras foram ao exterior e, uma vez lá, foram declaradas “inúteis para o consumo”. Sorte delas? Não! Elas já estavam mortas. Os estrangeiros as rejeitaram!
Do mesmo modo, também pelos jornais, cheguei a ficar sabendo da doença da vaca louca. Que coisa não? Nunca pensei que uma vaca, sempre tão calma, pudesse ficar louca!
Hoje em dia há muita vaca na Internet. De novo falamos antes de gado que propriamente de vaca. Também aqui a noção de útil é fundamental. O gado é útil ao político, ainda que o faça passar vergonha! Será? Nem sei se há político, ainda, que tenha vergonha de seu gado! Deveria ter. O gado é o militante político que não consegue pensar por si mesmo. Ele segue cegamente o seu chefe político, contanto que sua quantidade de sal esteja no coxo todos os dias. O que é o sal? Ora, nada de dinheiro não, apenas palavras de ordem dogmáticas. Desse tipo de vaca eu não tenho dó. Mas uma vez morta, eu não comeria essa carne de modo algum. Não só por não comer carne nenhuma, mas também porque essa carne é falsa, tá mais para carne de burro mesmo!
© 2020 Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. Este texto teve uma primeira versão em 2017.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]