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Paul Preciado está na moda. O filósofo espanhol lida com cultura francesa e conhece bem os estudos culturais americanos. Ele tem 50 anos e se identifica como filósofo trans. Ele não precisa se dizer “filosofe” ou “filosofix”. Talvez ele até se denomine assim, já que às vezes usa “menine”, e é um adepto da teoria que dá poder à linguagem na circunscrição da ontologia (coisas caras à Butler e ao meu amigo pragmatista, já falecido, Richard Rorty). Mas creio que, se ele usa a tentativa de gênero neutro, não quer impor qualquer modificação da linguagem nossa, corriqueira. Ao contrário, ele é um filósofo da liberdade linguística.
É justamente isso que ele, em um capítulo sobre Michel Onfrey e Judith Butler em seu livro Um apartamento em Urano (Zahar), critica no colega francês. Preciado lembra que, ao contrário do que diz Onfray, Butler e outros defensores da Teoria Queer não estão dizendo que o gênero e o sexo precisam obedecer qualquer rigidez normativa. Dizer que gênero é uma realidade linguística não significa deixar a linguagem em aberto, para uma escolha aleatória e idiossincrática de cada um, ou deixar crianças ficarem adultas para escolherem como querem ser chamadas. Dizer que gênero e até mesmo sexo são realidades ontológicas que se formam antes pela linguagem que por qualquer natureza extra humana e extra cultura, é uma maneira de levantar uma crítica contra aqueles que, advogando um realismo a respeito do sexo, dão aval à normatividade binária que cerceia nossa vida. E o que é cerceamento para todos é, para alguns, mais que isso, torna-se crueldade. Trans sabem bem disso.
Tanto quanto Butler, Preciado é um formulador de uma crítica ao identitarismo que, não raro, em especial aqui no Brasil, se transforma também em uma ditadura e fomenta a perseguição de tipo fascista. Em entrevista à Folha de S. Paulo, ele diz algo que eu endosso em meus textos e vídeos:
“É preciso examinar com cuidado essa questão da identidade porque, se não, se tem a impressão de que, de um lado, há a universalidade e, do outro lado, as lutas identitárias. É preciso colocar em questão essa falsa relação entre universalidade e identidade. //Eu sou crítico das políticas de identidade porque as lutas feminista, gay e lésbica durante muito tempo se estruturaram como politicas de identidade, ou seja, elas pensaram que tínhamos a necessidade de uma identidade comum e de um identidade que fosse, finalmente, essencializada, reificada e naturalizada para construir uma luta política em torno dessa identidade. //O problema é que esse processo político, sobretudo a partir dos anos 1980, conduziu a mais identidade, mas não a mais liberdade, e a mais normalização, isso no interior da sociedade dominante heterossexual heteropatriarcal branca dominante.” (Folha de S. Paulo, 17/01/2021)
Penso que Preciado está correto ao insistir nessa ideia de que os movimentos identitários acabaram por essencializar as identidades dissidentes, quase que imitando, com sinal contrário, a identidade que se arvora de universal, que é aquela gerada pelo heteronormativismo. Esse essencialismo posto na esquerda gerou movimentos estranhos. Um deles foi a armadilha do “lugar de fala”. Os identitários que seguem essa via se baseiam na ideia de um direito natural para legitimar suas identidades e, a partir daí, conferem a si mesmos super poderes no entendimento de questões sociológicas, antropológicas e filosóficas. Acham que só o negro pode falar de negro, que só o gay pode falar de gay, que só mulher pode falar de mulher etc. Criam o chamado “lugar de fala”. Erram duas vezes. Primeiro: erram porque não possuem esses superpoderes, e qualquer um que estudou ciências humanas sabe disso. Basta uma aula de confronto entre positivismo e historicismo, entre sociologia positiva de Durkheim e sociologia compreensiva de Weber, para sabermos que na segunda opção há instrumentos para se tentar viver na pele de outros e adquirir empatia que favorece a riqueza epistemológica. Segundo: erram porque o “lugar de fala” é aproveitado pelos grupos hegemônicos no sentido de fixar as minorias em guetos, e ainda por cima justificar tal fixação como se fosse uma requisição das próprias minorias. Nesse sentido, o identitarismo termina por ser uma política nociva para as minorias.
Mas tudo isso é apenas um lado da filosofia de Preciado. Nenhuma novidade até aí. Creio que o melhor dele, ainda que não seja totalmente novo, é a sua abordagem, em termos de formação da subjetividade, a respeito do que ocorre em nossa sociedade capitalista pós-fordista. Ele postula que vivemos em uma “época farmacopornográfica”.
Fico tentado a tratar isso como uma ampliação ou uma especificação do que Byung-Chul Han chama de “sociedade da transparência”, fruto da positividade neoliberal. Preciado não cita Han, mas o que ele diz tem a ver com um aspecto do pensamento do filósofo germano-coreano. Nossa sociedade tudo penetra com olhar que é aquele da pornografia. Nenhum véu, nenhuma cobertura, nada da antiga sutileza das treliças e do lusco fusco. Uma ética da transparência total e uma estética do liso se impõem, como continuidade de uma cultura em que a diversidade é permitida e incentivada, mas não a alteridade, não a consideração pelo Outro, pelo que é efetivamente distinto. Trata-se de um requisito da uma “sociedade da leveza”, como escreve Peter Sloterdijk. Até aí cobrimos a noção de pornografia. Mas e a parte do “fármaco”? Nesse caso, é fácil entender Preciado quando ele diz que estudou a Aids, a pílula anticoncepcional e, agora, a Covid, doença que diga-se de passagem, também o pegou. Nesse caso, a transparência se instaura por obrigação da receita farmacológica. Nossa privacidade deixa de existir por conta da digitalização do mundo exigida pela receita de uma doença que exigiu distância social, locadown e, portanto, a frequência de todo mundo na intimidade de todo mundo. A vida sob “lives” virou regra em 2020. Todos nós nos transformamos em pessoas internas a algum reality show. Abrimo-nos para o olhar que é o olhar pornográfico.
Acrescento até mais – e nesse caso falo por minha conta. Uma doença que é uma sindemia, ou seja, uma pandemia que só existe como elemento biopolítico, exige que tudo seja público, que as salvaguardas do mundo privado desapareça. Nesse caso, as receitas médicas são parte de políticas públicas e tudo o mais é público. Em uma live da Mariangela Cabelo para o canal Todos pela Saúde, ela recebeu um jornalista do UOL que estava em Manaus. A pergunta dela ao jornalista já se deu nesse contexto: “o que é para você, sendo jornalista, a tarefa de ter de entrevistar pessoas que estão perdendo entes queridos?” A resposta do jornalista trouxe à tona a farmacopornografia. Ele respondeu mais ou menos assim: em nome de se falar de uma doença que afeta todos, em nome de procedimentos farmacológicos – no caso, o uso do oxigênio – surge aí uma certa liberdade para que se possa falar sobre a morte diretamente com pessoas que perderam parentes, sem grandes constrangimentos, sem salvaguardas.
Por que podemos agir assim? Pela instauração da realidade farmacopornográfica.
Os mortos são rapidamente enterrados. Não há velório. As pessoas, atônitas, recebem o jornalista e falam dos mortos. Em outras circunstância, não ousaríamos entrar em conversação sobre isso. As pessoas se resguardariam na dor e seriam deixadas no luto, no silêncio. A era farmacológica abre o olhar pornográfico e legitimado pela importância (ou não) do fármaco público, para que esse olhar faça o que sabe fazer: bisbilhotar. A bisbilhotice ganha legitimidade e se transforma em jornalismo. O fura-luto é aceito pois se faz de agente a serviço da utilidade pública. A sindemia tem essa condição biopolítica que a põe como legislando sobre todos, criando o fim de barreiras, a necessidade de se deixar tudo transparente: quantos morreram, como sofreram, que tipo de vida levavam. E sobre quem restou as perguntas são ainda mais invasivas: qual conselho você dá aos que ficaram? Você irá se vacinar? Qual figura pública teve culpa nisso todo? Tudo pode ser perguntado, comentado, falado e levado adiante como um serviço. Não há lugar para o luto.
© 2021, Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo
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